A minissérie Treta (Beef, 2023, Netflix) é algo que todo mundo está vendo ou falando e, mesmo assim, consegue atingir um pico de qualidade. É muito mais interessante, profunda e divertida do que a caracterização superficial que recebeu nas resenhas — algo do tipo "entretenimento tenso, sobre o atual estresse social dominante, girando em torno do ódio mútuo".
Tal descrição e o trailer não me chamaram a atenção. Mas após ver algumas recomendações de que é muito mais do que isso, sentei pra ver e quase não consegui levantar. Para mim, a tensão nem foi o elemento dominante, é mais como um pano de fundo.
Tem até uma viagem psicodélica, crucial na trama, que achei uma das melhores que já vi na tela — outra inesquecível é a do faroeste peiotista Blueberry, de 2004 (caso se interesse por psicodélicos, não ligue para as resenhas negativas; é dos melhores).
Sim, Treta é sobre duas pessoas que se odeiam, mas também retrata depressão e distúrbios mentais (que já se tornaram uma nova normalidade), sua ligação com a raiva e emoções similares, imigrantes orientais em Los Angeles, irmandade e família, conflito entre ricos e assalariados, crítica ao vazio do modelo de vida atual, propósito e, por causa disso, até certa espiritualidade.
É impressionante a alternância sem conflito entre momentos hilários, tensos e emocionantes.
Uma cena bem de passagem ilustra perfeitamente, para mim, a fina qualidade da narrativa: em uma igreja evangélica, o protagonista não consegue segurar e explode num choro de bebê, ao som de um hino gospel louvando Jesus. Considerando o tom ácido e esperto da série, esse seria um cenário ideal para algo bem cínico, escrachado ou até "cringe". Mas me peguei em arrepios lacrimogêneos. Mesmo não tendo nada de cristão (assim como a série também não é nada disso), fui até pesquisar no Youtube que música era aquela, encontrando vários comentários com o mesmo sentimento.
Compõe a história toda uma matriz de encadeamentos emocionais, familiares e sociais que se embaralham, quase como numa dança, resultando em raiva, alienação e vazio, sem perder de vista a almejada redenção.
Continuo pensando até agora: como pode? Uma coisa assim tão massificada — como uma série Netflix — transmitir insights tão valiosos (por exemplo, sobre a futilidade, ilusão e causas ocultas do ódio) ao mesmo tempo que entretém de modo sem igual.