Mencionei outro dia um podcast: Conto — Emergency Skin, N.K. JemisinConto — Emergency Skin, N.K. Jemisin
A autora de ficção científica N.K. Jemisin estava na minha lista de leitura faz tempo, por ser tão premiada, pela inclusividade e por retratar questões sociopolíticas como racismo. Ouvindo um podcast da Annalee Newitz — autora do ótimo The Terraformers…. Esse ótimo episódio (em inglês) é sobre a escritora Ayn Rand (1905 ~ 1982), referida no programa como a autora de ficção científica mais influente do mundo.
Imaginava que poucas pessoas conheciam Ayn Rand no Brasil, já que leio scifi desde moleque e só fui ouvir falar dela uns anos atrás, em obras que mencionam o modo como o "egoísmo empreendedor" se tornou uma qualidade desejável, de modo plenamente justificável, em nossas sociedades hipercapitalistas. Mas seus livros parecem fazer sucesso também por aqui — pelo menos estão traduzidos e publicados com destaque.
O livro mais recente que li, que dedica um longo capítulo a Ayn Rand, é The Big Myth — How American Business Taught Us to Loathe Government and Love the Free Market (2023), já que ela foi uma das pessoas que mais contribuíram, com suas fábulas neoliberais, para justificar a ideologia dos donos de corporações e bilionários.
Associações de empresários chegaram a doar centenas de milhares de exemplares para escolas nos EUA, nos anos 50, conseguindo emplacar esses livros como leitura obrigatória para jovens estadunidenses. Bilionários como Bill Gates, Steve Jobs ou o czar neoliberal Alan Greenspan viam A Revolta de Atlas como uma obra que definiu seu pensamento.
A história se passa numa distopia do tipo socialista, em que empresários individualistas são os heróis. Até hoje, faz muito sucesso principalmente entre os ricaços e techbros do Vale do Silício, ou com a turma cripto de anarco-capitalistas (que defendem a ausência de controle sobre fortunas).
Uma crítica comum às ideias de Ayn (se pronuncia "Áin") é que seus livros deveriam ter o subtítulo "Tudo bem ser sociopata". Pode parecer uma exagero difamatório, mas lembrei daquele documentário A Corporação (2003), que comprova uma ideia: se uma megacorporação fosse uma pessoa, ela apresentaria rigorosamente os traços psicológicos de um psicopata:
- desconsideração insensível pelos sentimentos alheios;
- incapacidade de manter relacionamentos humanos;
- desconsideração imprudente pela segurança alheia;
- trapaça (mentir continuamente para enganar e obter vantagens);
- incapacidade de sentir culpa;
- fracasso em se adequar a preceitos sociais e seguir a lei.
Uma das obras de Ayn se chama A Virtude do Egoísmo.
Nunca li nenhuma, mas tenho curiosidade, para entender melhor esse reflexo individual do capitalismo predatório que dominou o mundo. Esse livro que citei, The Big Myth, é ótimo nesse sentido, já que traça com precisão de onde surgiram as ideias que passaram a dar credibilidade e respaldo intelectual à fixação na ganância.
Segundo The Big Myth, antes de Ayn, ou de pessoas como Friedrich Hayek e Milton Friedman — pais do neoliberalismo —, a ganância e ambição que não se importa com ninguém eram consideradas apenas o que de fato são: algo repulsivo. Já esses autores construíram com sua filosofia uma aura de respeito em torno disso. Multimilionários não precisavam mais sofrer constrangimento social por sua falta de caráter.
Ayn Rand fugiu da Rússia, sendo traumatizada pela revolução socialista que tirou os bens de sua família, e adotou os EUA. Seu rancor contra o totalitarismo de esquerda parece estar na base de sua obra, se expandindo também para tudo o que ela imaginava estar associado com isso, como políticas de bem-estar social e até o altruísmo individual!
Defensores de Ayn dizem que teria havido uma deturpação de sua filosofia pela direita política. Em essência, ela seria apenas a filosofia de um individualismo íntegro e eficaz, em que prejudicar outras pessoas, por exemplo, não traria vantagens.
Acho que pode haver um ponto aí, pois, como documenta The Big Myth, o fator decisivo para a disseminação do ideal neoliberalista como uma cultura dominante não foram os autores dessas obras. Essas pessoas nem eram levadas a sério por seus pares, já que suas ideias eram consideradas sórdidas demais. O que determinou sua ampla difusão foram os think tanks e associações de direita que, financiadas pelas corporações, trabalharam durante décadas para plantar essa ideologia na cultura popular.
Por exemplo, foi feita até uma versão em tiras de O Caminho da Servidão, de Hayek, já que o livro era considerado filosófico demais para o empresário padrão. Dizem que Ronald Reagan, quando ainda era o porta-voz na TV da General Electric, tinha essa HQ como uma fonte de informação fundamental.