‘Dark’ e a falácia da viagem no tempo

>

Pôster da série "Dark"

Depois de abandonar a série Dark (Netflix, 2017~20), fiquei pensando em como é absurdo o conceito de viagem no tempo que costuma aparecer na ficção.

Não que a série seja ruim. Tem qualidades excepcionais. Sou eu que não consigo aproveitar muito histórias sobre viagem no tempo ou universos paralelos.

"O que é tempo e espaço?" Se deixarmos de lado essa questão (o que Dark não faz, muito pelo contrário), parece até senso comum a ideia de que são realidades externas, com existência independente, assim como a eletricidade ou gravidade, por exemplo. Sendo assim, não é absurdo imaginar uma volta ao passado, como sendo um mundo visitável, existindo por conta própria, independente do sujeito observador.

Apesar de histórias desse tipo terem virado clichê na ficção científica, imagino que seu maior apelo ainda esteja no fascínio pela ideia de voltar no tempo para corrigir erros — quem não gostaria de fazer isso? Já o conceito por trás, examinado mais profundamente, revela muito pouco sentido.

Concordo bastante com o que o filósofo alemão Kant propôs (em Crítica da Razão Pura, séc. 18): tempo e espaço não são qualidades objetivas do mundo mas, sim, conceitos "a priori" (independentes da experiência) inatos na mente.

Essa é uma afirmação imensa e desafiadora, analisada em profundidade na obra de Kant. Uma faísca dessa ideia pode ser vislumbrada com uma pergunta paradoxal: que horas são no universo?

Não há resposta porque o tempo é uma medição subjetiva dependente de objetos em lugares específicos, e o universo não é um lugar específico mas, sim, tudo. O tempo é subjetivo (assim como o espaço). É como um modo de percepção. Não existe por si só, independente de um sujeito.

Assim, a volta no tempo e a visita a um local do passado, em que é encontrada uma versão mais jovem de si, só pode existir como uma imagem conceitual ligada à memória.

Claro que eu também adorei os filmes De Volta para o Futuro ou Terminator, na época. Mas, no fundo, a base da trama é mais irreal do que fadas e monstros. Porque ela apela para uma base científica (mesmo que ficcional), evocando um senso de que isso talvez seja possível com o avanço tecnológico, em vez de se apresentar de cara como pura imaginação mágica ou surreal.

Mas, se histórias de viagem no tempo fossem contadas como sendo sobre magia fantástica ou mitológica, imagino que perderiam o apelo da aura científica (ou seja, de que talvez seja possível).

Levando em conta a filosofia de Kant, de que o tempo é um conceito inato que molda a experiência, a única maneira coerente de imaginar uma volta no tempo seria retrocedendo o filme de nossa experiência subjetiva, em que perderíamos a memória e agiríamos como antes, ou nem tanto. Mas como elemento narrativo isso não tem tanta força.

Outra contradição dessas histórias sobre viagem ao passado é que isso não ocorre em nenhum momento, pois mesmo a experiência de um mundo do passado ainda se desdobra no futuro, do ponto de vista de quem vivencia.

Essa é uma consequência negativa da filosofia: fica difícil me entreter com certas histórias, pois perdem o sentido, o roteiro não fecha.

Insisti em Dark até a segunda temporada. Estava dando pra relevar o nonsense dos loops temporais em que tudo se baseia, pois os elementos dramáticos e psicológicos são exemplares; e muita gente boa elogiava a série e o final. Mas quando veio ainda por cima a coisa dos universos paralelos, aí larguei de vez (escrevi porque tenho uma barreira com esse outro clichê scifi em: O livro de Ursula Le Guin que sempre quisO livro de Ursula Le Guin que sempre quis
A primeira vez que ouvi falar de Ursula K. Le Guin foi buscando autores de ficção científica similares a Philip K. Dick, há algumas décadas, quando ele era meu autor favorito. Dick é mais famoso pela história que o clássico…
).

Mas vou lembrar com carinho dos clipes musicais no final de cada episódio, uma das coisas mais bonitas de Dark, e da inesquecível atmosfera densa e bem obscura em torno das motivações humanas.