Apocalipse na era da IA e emergência climática

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capa do livro "After World"

Virou lugar-comum escrever aqui que um livro foi um dos melhores que já li. Tudo bem. Isso é exatamente o que senti com After World (2023), de Debbie Urbanski, dentro do gênero apocalíptico.

A história se passa mais ou menos no final deste século, após a programação de um apocalipse gradual para a humanidade — já em deterioração contaminante avançada —, para que ecossistemas da Terra também não sejam extintos.

Acompanhamos uma inteligência artificial responsável por documentar a vida da última pessoa do planeta, Sen. Essa IA é a narradora principal e acaba quebrando os protocolos após mudanças em sua consciência, devido ao que vai aprendendo e testemunhando. Ela não tem como evitar se apaixonar por Sen.

O trabalho de Sen, por sua vez, era testemunhar e documentar a regeneração do mundo natural, agora sem a destruição humana.

O livro é diferente por vários motivos. Começando pelo formato: há transcrições de cadernos, trechos de obras relacionadas à essa "Grande Transição", diálogos entre IAs… Tem até reproduções de um terminal de computador listando arquivos e comandos (detalhe nerd: é Linux/Unix!).

A narrativa consegue transmitir também a evolução dessa IA em direção a uma consciência mais humana.

Terminei o livro em poucos dias, mesmo sendo uma história sem suspense ou "cliff hangers" (aqueles manjados finais de capítulo bem no clímax, para prender). Apesar da desolação extrema, a história consegue capturar e envolver apenas com o poder de sua narrativa, personagens e cenário.

Como disse Jorge Luis Borges, algumas das melhores histórias são histórias dentro de histórias. After World tem muitas delas.

E também é uma meta-história, uma história sobre o poder de histórias. Para criar a biografia, a narradora se baseia em tudo o que já foi produzido culturalmente, principalmente dentro do gênero de ficção apocalíptica, e vai comentando suas escolhas narrativas. Por exemplo, desfazendo clichês ou replicando-os, quando necessário.

Ela diz coisas como: "Quando humanos imaginavam seu apocalipse, criavam cenas como X e Y. Mas agora que aconteceu de fato, vimos que a verdade é Z."

Um detalhe que me chamou a atenção foi a repetida referência ao livro Estação OnzeEstação Onze
Encheu meu coração a série Estação Onze (Station Eleven, HBO, 2021). Restaura a fé na humanidade diante das cada vez mais presentes ameaças cataclísmicas; não no sentido de como evitar o desastre, mas sim que, mesmo nas piores condições, podemos…
, que adoro (a série da HBO também é ótima). Debbie inclusive mencionou em entrevista que sua obra é um diálogo-homenagem com esse outro livro, que também fala sobre o poder de histórias mas, diferentemente, retrata um apocalipse cheio de esperança.

Em After World, as vidas de todos os seres humanos estão sendo documentadas e digitalizadas para um projeto de arquivar e subir tudo na nuvem. É a isso que o título se refere.

Só fiquei um pouco encucado com um paradoxo. Após o evento que define a extinção gradual da humanidade, humanos restantes são doutrinados autoritariamente para compreender que a natureza não está a serviço das pessoas, que somos apenas uma entre suas inumeráveis formas, sem hierarquia.

Achei isso paradoxal porque a mensagem é bem verdadeira, mas ela é forçada goela abaixo de pessoas condenadas involuntariamente. Assim, essa visão ecológica ficou parecendo algo dogmaticamente radical, estilo Taleban. Pode fazer com que leitores desavisados criem aversão por essa ideia de que não somos o centro da natureza ou universo.

Até perguntei isso para a autora. Coincidentemente, no momento em que terminei o livro e fui buscar no Reddit uma discussão sobre o final, encontrei um "Ask Me Anything" dela, iniciado poucas horas antes.

Taí uma das preciosidades dos poucos cantos da internet com motivações mais humanas (não que o Reddit seja lá grande coisa, mas…): poder conversar com a autora de um livro amado após a leitura!