O artigo abaixo é um pequeno clássico de David Graeber, um dos poucos autores anarquistas1 cuja influência rompeu e bolha para muito além do ativismo. Seus livros entraram nas listas de best-sellers e até hoje são amplamente comentados. Entre eles, o póstumo O Despertar de Tudo (2021, com David Wengrow), que desfaz, entre outras, a narrativa neoliberal da história humana2 disseminada por autores como Yuval Harari ou Steven Pinker.
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Há também o artigo de Graeber sobre super-heróis: Ultraconservadorismo dos filmes de super-heróiUltraconservadorismo dos filmes de super-herói
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A tradução foi revisada a partir da versão da Biblioteca Anarquista, que disponibiliza outros textos de Graeber.
Você é anarquista? A resposta pode te surpreender
David Graeber (original em inglês)
É provável que você já tenha ouvido algo sobre quem são anarquistas e no que supostamente acreditam. É provável que quase tudo que você ouviu não seja verdade. Muitas pessoas parecem imaginar que anarquistas defendem violência, caos e destruição, que são contra todas as formas de ordem e organização, ou que são niilistas enlouquecidos que só querem explodir tudo. Na verdade, nada poderia estar mais longe da verdade. Anarquistas são simplesmente pessoas que acreditam que seres humanos são capazes de se comportar de modo razoável sem precisarem ser forçados. É uma noção realmente muito simples, mas é algo que ricos e poderosos sempre consideraram extremamente perigoso.
Basicamente, os princípios anarquistas se referem a duas premissas elementares. A primeira é que todos os seres humanos são, sob condições normais, tão razoáveis e decentes quanto lhes é permitido ser, e que podem organizar a si mesmos e suas comunidades sem precisar que lhes seja dito como fazer. A segunda é que o poder corrompe. Acima de tudo, o anarquismo é apenas uma questão de coragem para adotar os princípios simples de integridade comum pelos quais todos vivemos, e segui-los até suas conclusões lógicas. Pode parecer estranho mas, na maioria daquilo que importa, você provavelmente já é anarquista — apenas não se dá conta disso.
Vamos começar considerando alguns exemplos do cotidiano.
Se há uma fila para pegar um ônibus lotado, você espera sua vez e se abstém de furar mesmo na ausência da polícia?
Se respondeu “sim”, então você está acostumado a agir como anarquista! O princípio anarquista mais básico é a auto-organização: a hipótese de que seres humanos não precisam ser ameaçados com processos judiciais para que sejam capazes de se entender razoavelmente ou tratar-se mutuamente com dignidade e respeito.
Todas as pessoas acreditam ser capazes de se comportar de maneira razoável por si próprias. Caso pensem que leis e polícia são necessárias, é somente porque não acreditam que as outras pessoas são capazes disso. Mas, se pensar sobre isso, não é que todas essas pessoas pensam exatamente o mesmo sobre você?
Anarquistas argumentam que quase todo comportamento antissocial que nos faz pensar que é necessário haver exércitos, polícia, prisões e governos para controlar nossas vidas, na verdade, é causado pela desigualdade sistemática e pela injustiça que exércitos, polícia, prisões e governos causam. É um círculo vicioso.
Se as pessoas se acostumam a ser tratadas como se suas opiniões não importassem, elas provavelmente se tornam nervosas e cínicas, até mesmo violentas — o que, é claro, facilita para aqueles que estão no poder afirmarem que as opiniões delas não importam. A partir do momento que elas veem que suas opiniões realmente importam tanto quanto as de qualquer uma, elas tendem a se tornar notavelmente compreensíveis.
Resumindo uma longa história: anarquistas acreditam que, na maioria dos casos, é o poder e os efeitos do poder que tornam as pessoas estúpidas e irresponsáveis.
Você é membro de um clube ou time esportivo ou qualquer organização voluntária em que decisões não são impostas por um líder, mas são tomadas com base em consenso geral?
Se respondeu “sim”, então você pertence a uma organização que opera com princípios anarquistas! Um outro princípio anarquista básico é a associação voluntária. Isso é simplesmente uma questão de aplicar princípios democráticos à vida cotidiana. A única diferença é que anarquistas acreditam que deveria ser possível termos uma sociedade em que tudo seja organizado desse jeito. Todos os grupos sendo baseados no livre consentimento de seus membros, de modo que todos os tipos de organização de cima para baixo — como o estilo militar de exércitos, burocracias ou grandes corporações, baseados em cadeias de comando — não sejam mais possíveis.
Talvez você não acredite que isso seja possível. Talvez. Mas, toda vez que você combina algo com base em consenso e não ameaças, toda vez que firma um acordo voluntário com outra pessoa, chega a um entendimento ou concessão levando em conta a situação ou necessidade particulares de outra pessoa, você está sendo anarquista — mesmo que não se dê conta disso.
Anarquismo é apenas o modo como as pessoas agem quando são livres para fazer o que escolhem e quando lidam com outras pessoas igualmente livres — e, portanto, conscientes da consequente responsabilidade com os outros.
Isso leva a outro ponto crucial: o de que, ao mesmo tempo que pessoas podem ser sensatas e perspicazes quando lidam com iguais, há uma natureza humana que faz com que não sejam mais confiáveis nisso ao ganharem poder sobre os outros. Dê poder às pessoas, e elas quase invariavelmente abusarão disso de um jeito ou de outro.
Você acredita que políticos são, em sua maioria, egoístas nojentos que não se preocupam de verdade com o interesse público? Você pensa que vivemos sob um sistema econômico que é estúpido e injusto?
Se respondeu “sim”, então você concorda com a crítica anarquista sobre a sociedade atual — ao menos, em seu sentido mais amplo. Anarquistas acreditam que o poder corrompe e que aqueles que passam sua vida inteira à procura de poder são as últimas pessoas que deveriam tê-lo. Anarquistas acreditam que nosso sistema econômico atual recompensa mais as pessoas por comportamento egoísta e sem escrúpulos do que por serem pessoas íntegras e cuidadosas com as outras.
A maioria das pessoas pensa assim. A única diferença é que a maioria não acredita que existe algo a ser feito, ou que de qualquer jeito não há nada que não acabe tornando as coisas ainda piores — esse é o ponto que os servos mais fiéis dos poderosos sempre estão mais propensos a repetir.
Mas e se isso não for verdade?
E… há realmente algum motivo para acreditar nisso? Quando testada, a maioria das previsões comuns sobre o que aconteceria sem Estados ou capitalismo se revela totalmente falsa. Por milhares de anos as pessoas viveram sem governos. Em muitas partes do mundo, pessoas vivem fora do controle de governos hoje. Elas não se matam todas umas às outras. Vivem basicamente suas vidas do mesmo jeito que outras viveriam.
É claro que, em uma sociedade complexa, urbana e tecnológica, isso seria mais complicado; mas a tecnologia pode também fazer com que esses problemas se tornem mais fáceis de resolver. O fato é que sequer começamos a pensar no que seria das nossas vidas se a tecnologia fosse guiada para servir às necessidades humanas.
Quantas horas realmente teríamos que trabalhar para manter uma sociedade funcional? Ou seja, se acabarmos com todas as profissões inúteis e destrutivas — como as de operadores de telemarketing, advogados, agentes penitenciários, analistas financeiros, experts em relações públicas, burocratas e políticos — e tirássemos nossas melhores mentes do trabalho com armamento espacial ou sistemas para bolsas de valores e as colocássemos na automatização de tarefas perigosas e irritantes — como mineração de carvão ou limpeza de banheiros, e distribuíssemos o restante do trabalho entre todos igualmente. Cinco horas por dia? Quatro? Três? Duas?
Ninguém sabe porque ninguém está sequer perguntando esse tipo de questão. Anarquistas pensam que essas são exatamente as questões que deveriam ser perguntadas.
Você realmente acredita nessas coisas que conta para suas crianças (ou que seus pais contaram a você)?
“Não importa quem começou a briga.” “Uma coisa errada não justifica outra.” “Arrume sua própria bagunça.” “Não faça aos outros aquilo que não gostaria…” “Não seja maldoso com os outros só porque são diferentes.” Talvez precisamos decidir se estamos mentindo para nossas crianças quando dizemos a elas o que é certo e errado, ou decidir se devemos levar essas regras a sério. Porque, ao seguir esses princípios morais até suas conclusões lógicas, você chega no anarquismo.
Pegue o princípio de que uma coisa errada não justifica outra. Se levar isso a sério, só isso acabaria com quase todo o embasamento para a guerra e o criminoso sistema judicial. O mesmo vale para o princípio do compartilhamento: sempre falamos para nossas crianças que elas têm que aprender a compartilhar, a considerar as necessidades alheias, a ajudar umas às outras; mas então saímos para o mundo real onde pressupomos que todo mundo é naturalmente egoísta e competitivo.
Mas um anarquista apontaria: na verdade, o que dizemos a nossas crianças está certo. Boa parte de todo grande acontecimento na história mundial, toda descoberta ou realização que melhorou nossas vidas foi baseada em cooperação e ajuda mútua.
Mesmo agora, a maioria de nós gasta dinheiro tanto com amigos e familiares quanto com nós mesmos. Sendo possível que pessoas competitivas sempre vão existir no mundo, não há motivo para que a sociedade precise se basear no encorajamento de tal comportamento competitivo, muito menos fazer as pessoas competir por necessidades básicas da vida. Isso serve apenas aos interesses das pessoas no poder, que querem que vivamos uns com medo dos outros. É por isso que anarquistas clamam por uma sociedade baseada não só na livre associação, mas também na ajuda mútua.
O fato é que a maioria das crianças cresce acreditando em uma moral anarquista, e gradualmente se dá conta que o mundo adulto não opera dessa maneira. É por isso que muitos se tornam rebeldes ou alienados, ou mesmo suicidas, quando adolescentes, e finalmente se tornam resignados e amargos como adultos. Com frequência, seu único consolo é ter filhos e fingir para eles que o mundo é justo. Mas e se realmente pudéssemos começar a construir um mundo que de fato fosse baseado em princípios de justiça? Não seria esse o maior presente que alguém poderia dar às crianças?
Você acredita que seres humanos são essencialmente corruptos e maldosos, ou que alguns tipos de pessoas (mulheres, pessoas de cor, pessoas comuns que não são ricas ou altamente educadas) são tipos inferiores, destinados a ser liderados por seus superiores?
Se respondeu “sim”, bem, então parece que você não é anarquista afinal de contas. Mas se respondeu “não”, então é provável que você já concorda com 90% dos princípios anarquistas e, acredite ou não, está vivendo boa parte do tempo de acordo com eles.
Toda vez que você trata outro humano com consideração e respeito, você está sendo anarquista. Toda vez que lida com suas diferenças em relação aos outros a fim de chegar a uma concessão razoável, ouvindo o que todos têm a dizer ao invés de deixar uma pessoa decidir por todos, você está sendo anarquista. Toda vez que você tem a oportunidade de forçar alguém a fazer algo, mas decide, em vez disso, considerar o senso de razão ou justiça dela, você está sendo anarquista. O mesmo vale para toda vez que divide algo com uma amizade, ou decide quem lava a louça, ou faz qualquer coisa com uma consideração pelo que é justo.
Agora, talvez você afirme que tudo isso parece bom e legal para pequenos grupos de pessoas se relacionarem, mas que administrar uma cidade ou um país é uma questão totalmente diferente. E é claro que há um ponto aí. Mesmo que você descentralize a sociedade e coloque o máximo de poder possível nas mãos de pequenas comunidades, ainda há muitas coisas que precisam ser coordenadas, desde manter ferrovias até decidir rumos para a pesquisa médica.
Mas só porque algo é complicado não significa que não há jeito de fazer isso democraticamente. Isso seria apenas complicado. Na verdade, anarquistas têm todo tipo de ideias e visões diferentes de como uma sociedade complexa poderia administrar a si mesma. Para explicá-las, no entanto, iríamos para muito longe do escopo de um pequeno texto introdutório como este.
É suficiente dizer, antes de tudo, que muitas pessoas têm passado muito tempo elaborando modelos de como uma sociedade realmente democrática e saudável poderia funcionar; e que, não menos importante que isso, nenhum anarquista afirma ter um esquema perfeito. A última coisa que queremos é, afinal, impor modelos pré-fabricados de sociedade. A verdade é que provavelmente não podemos sequer imaginar metade dos problemas que virão quando tentarmos criar uma sociedade democrática.
Ainda assim, seguimos confiantes, levando em conta a engenhosidade humana, de que tais problemas podem ser resolvidos, desde que em acordo com o espírito dos nossos princípios básicos, que são, numa análise final, simplesmente princípios de integridade humana fundamental.
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Alguns anarquistas puristas não consideram autores como David Graeber ou Noam Chomsky anarquistas, por eles defenderem modos de organização como assembleias de consenso, sindicalismo ou princípios democráticos, que não pertenceriam ao anarquismo original. ↩
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Alguns elementos dessa narrativa fictícia: a atual situação não seria alarmantemente anormal, seria um processo evolutivo natural; pequenos agrupamentos viviam em igualdade; com a “descoberta” da agricultura, surgiu a acumulação de bens e desigualdade; grandes cidades e progresso necessariamente implicam desigualdade. São todos mitos, já refutados por evidências. ↩