Atitudes de tecno-bilionários são bastante indigestas, mas renderam um livro de não ficção saboroso, na crônica de Douglas Rushkoff: Survival of the Richest (2023).
Rushkoff é um influente autor contracultural na área de tecnologia. Ele reflete sobre a mentalidade da atual geração de plutocratas que planeja passear imune à destruição planetária que causam.
Apesar de o subtítulo do livro ser “Fantasias escapistas dos tecno bilionários”, não é apenas sobre a esperança de fugir para Marte, bunkers na Nova Zelândia ou de “evoluir” para uma consciência digitalizada imortal. Um tema central é uma ideologia que o autor batizou como A Mentalidade (“The Mindset”), um denominador comum na atitude desses bilionários da era digital, mas que também se dissemina para baixo na forma de reformismos desse tipo: “Como resolver os problemas da exploração e tecnologia? Mais exploração e tecnologia.“
Como o livro é praticamente inteiro sobre isso, não é simples resumir o conceito. A Mentalidade é um tipo de supremacismo, um senso de superioridade baseado em riqueza, poder e tecnologia, em que não há limites para a exploração alheia ou danos ao ambiente e demais seres, além de não faltar imaginação sobre sua imunidade às consequências do próprio rastro de destruição, como se estivessem num patamar evolutivo mais alto que lhes dá carta branca.
Um trecho que grifei sobre uma característica quase anatômica desses bilionários:
Estudos demonstraram que quanto mais poder uma pessoa tem, menos "ressonância motora" ou espelhamento ela faz com as outras. É claro que pessoas que procuram o poder podem estar predispostas a esse comportamento. Mas outras pesquisas sugerem que, depois de ganharem poder, pessoas tendem a comportar-se como pacientes com lesões nos lobos orbitofrontais do cérebro. Ou seja, a experiência da riqueza e do poder é semelhante à remoção da parte do cérebro "crítica para a empatia e o comportamento socialmente adequado". Pessoas mais pobres são muito melhores do que as ricas em considerar as emoções das outras pessoas. A sua capacidade de fazer "inferências empáticas" com base nos movimentos dos músculos faciais é muito superior.
Curiosamente, essa ideia inflada de si também alimenta em alguns um complexo de salvador. Acreditam que estão fazendo um bem para o progresso humano.
Outro trecho, mais ou menos relacionado:
Como diz Larry Page, cofundador da Google, o DNA humano tem apenas "600 megabytes comprimidos, ou seja, é mais pequeno do que qualquer sistema operacional moderno… Por isso, os algoritmos do seu programa não devem ser assim tão complicados". Este modelo da biologia humana é tão redutor como a afirmação de Dawkins de que "a vida é apenas bytes e bytes de informação digital". Tal como Francis Bacon e os primeiros cientistas empíricos negavam qualquer aspecto da natureza que não pudesse ser quantificado, os redutores digitais de hoje querem que neguemos qualquer aspecto da experiência humana que não possa ser quantificado como código. Tudo pode ser representado por símbolos. Tudo é apenas informação. Nada de estranho, úmido ou verdadeiramente selvagem. É a religião nerd última.
Já que Rushkoff é um respeitado cronista da revolução digital, ele circula com fluência no Vale do Silício. Narra diversas interações com esse tipo de gente. Por exemplo, quando milionários o chamaram para uma consulta sobre estratégias financeiras pós-apocalípticas. “Como garantir que vão me obedecer em um mundo onde o dinheiro não terá mais valor?”, chegaram a lhe perguntar.
Em outra ocasião surreal, foi avaliar uma versão empresarial VIP do festival tecno-psicodélico Burning Man.
O livro é tão cativante quanto seu podcast Team Human — atualmente o único desse tipo de mídia que costumo ouvir. Aliás, a origem desse nome é esclarecida no livro. O papa dos singularistas Ray Kurzweil certa vez desdenhou de uma tirada de Rushkoff à sua utopia de consciência digitalizada, dizendo: “Você fala isso por que é humano”.
“Claro que sou humano, eu sou do time humano (team human)”, respondeu Rushkoff.