Guerra Civil (2024), de Alex Garland, é praticamente um filme de horror apocalíptico, que dispensa as tradicionais metáforas do gênero como zumbis, alienígenas ou robôs assassinos. Após a escalada dos conflitos políticos estadunidenses, o país colapsa numa guerra civil generalizada.
Vi algumas críticas negativas do filme. São bem compreensíveis porque, em um país prestes a repetir a catástrofe em todos os níveis da administração Trump, falar de guerra civil sem passar uma mensagem política clara pode ser visto como algo isento ou estéril demais. Criticaram porque ele pode agradar tanto à extrema-direita quanto à esquerda, espetacularizando o horror.
Mas, para mim, é uma qualidade essa indiferença política com esquerda ou direita. Isso na verdade é um elemento central da atmosfera devastadora do filme. Pouco importam as ideologias dos que estão se matando. O foco é o absurdo desse colapso total em um mecanizado ódio assassino mútuo.
Nem jornalistas, as supostas heroínas e heróis do filme, se salvam. Essa atividade profissional também se mostra tão deteriorada moralmente quanto a guerra. Talvez seja por isso que alguns não gostaram, ou ficaram perguntando qual é o ponto então do filme.
O que gostei foi o que já mencionei. Na verdade, é um filme de horror, daquele tipo mais perturbador, devido à dimensão sem escapatória que apresenta, e que certamente reflete um aspecto da realidade.
É também sobre a transformação de uma jovem fotojornalista, que não deixa de ser parte do horror. Uma boa fatia do choque (ou prazer catártico) é a devastação dos EUA e seus símbolos máximos. Como morei lá uns anos, senti forte o impacto. As cenas de ação impressionam pelo realismo.
Seria talvez simplista e superficial retratar um bom-mocismo de esquerda contra uma vilania fascista. Também é possível que a produção tenha preferido não fazer um filme tendendo à esquerda por motivos comerciais ou para não alimentar o atual incêndio da rivalidade ideológica.
Mas, prestando atenção nos detalhes, há indícios de que o presidente do filme é um extremista de direita. Sua guarda atira em jornalistas ao primeiro sinal. Está há 14 anos no poder e, mais ou menos no início de seu primeiro mandato, houve um “massacre antifa”, em que provavelmente antifascistas foram aniquilados pelo governo autoritário. Mas nada disso é conclusivo, são apenas sugestões em direção ao mais provável.
Kirsten Dunst, com sua expressão arruinada, parece feita para o papel da fotógrafa de guerra com alma destruída. Wagner Moura está ótimo, apesar de que seu personagem, um veterano repórter que ama desgraça, não é muito realista (na vida real jornalistas iniciantes é que costumam se comportar assim), mas não compromete.
É um filme para ver em tela, som e escuridão de cinema. Imagino que a telinha reduzirá bastante o poder desse filme.
Outras obras
Admiro o diretor Alex Garland desde quando ele apenas escrevia ótima ficção. É uma das poucas vozes autorais na ficção especulativa, com uma obra conjunta das mais sólidas. Alguns comentários sobre a maioria delas (perdi umas poucas):
- Livro A Praia (The Beach, 1996) — Mochileiros encontram uma ilha paradisíaca na Tailândia e criam uma mini-sociedade alternativa. Na época, adorei. Refletia bem certa futilidade da cultura de viajantes de mochila pelo mundo (eu mesmo estava fazendo isso). Há uma adaptação para as telas com Leonardo DiCaprio que fez sucesso, mas que diluiu bastante os aspectos sombrios da história.
- Livro The Tesseract (1998) — Histórias interligadas no submundo de Manila, Filipinas. Tenho memórias vagas sobre esse romance; a narrativa não é linear, mas lembro bem que achei forte e original.
- Extermínio (28 Days Later, 2002) — Garland escreveu o roteiro desse que é meu filme preferido de zumbi, dirigido por Danny Boyle (de Trainspotting). Foi uma sensação por ter sido filmado apenas com câmeras domésticas. Lançou o ator Cillian Murphy, de Oppenheimer. Depois Garland produziu uma sequência — Extermínio 2 (28 Weeks Later, 2007) — nada mal.
- Sunshine (2007) — Esse é meu preferido da lista em termos da quantidade de vezes que revi (umas 7). Garland novamente escreveu o roteiro para o diretor Danny Boyle. É hard-sci-fi (ciência realista). No futuro, o Sol está reduzindo seu calor, ameaçando a vida na Terra. Uma missão suicida de especialistas viaja até lá para jogar uma bomba nuclear que deve causar uma nova ignição em nossa estrela. Uma qualidade excepcional desse filme é evocar um senso sublime, quase espiritual, usando apenas ciência e nossa relação com as estrelas.
- Não Me Abandone Jamais (Never Let Me Go, 2010) — Escreveu e produziu essa adaptação do consagrado livro de Kazuo Ishiguro de mesmo nome. Dilacerante história de amor distópica.
- Dredd (2012) — Garland escreveu o roteiro além de produzir e co-dirigir essa adaptação da HQ britânica Judge Dredd. Quando adolescente lia isso; hoje não me conformo com o fascismo de um policial (ou qualquer super-herói) que julga e executa criminosos na hora. Por aqui, isso costumava se chamar “esquadrão da morte” ou Rota — não precisamos de ficção. Mas o filme não é ruim, para quem gosta de ação B e distopia horrorosa.
- Ex Machina (2014) — Ele dirigiu e escreveu esse que já é um cult-classic sobre IA. Um nerd bilionário e um funcionário escolhido testam as habilidades de uma nova geração de androide senciente.
- Aniquilação (2018) — Também dirigiu e escreveu o roteiro dessa adaptação de um de meus livros favoritos de todos os tempos. Um fenômeno toma conta de uma área florestal, transformando sua natureza de modo incompreensível. Nenhuma expedição que entra sai. E a coisa está se expandindo. Psiconautas costumam reconhecer um dos mais fiéis contatos psicodélicos já transpostos para a tela.
- Devs (2020) — Garland escreveu, dirigiu e produziu essa minissérie de ficção científica de oito episódios, para o canal FX. Um centro de pesquisa secreto de um tecnobilionário excêntrico possui o mais rápido computador quântico que existe. Sua aplicação desafia a realidade. Uma das melhores séries de hard-sci-fi que já vi. Não é coincidência que, dependendo da fonte utilizada para escrever “devs”, a palavra vira “deus”.
- Men: Faces do Medo (Men, 2022) — Horror lento, bizarro e surreal. Teve gente que torceu o nariz porque a arte está nas camadas ocultas, sobre a ancestralidade do macho tóxico. Tudo simboliza algo e, ao reunir as peças, o sentido brilha. É cerebral, mas isso não desqualifica. Dirigiu e escreveu.