Atração irresistível das seitas

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Amy Carlson, a ‘deusa mãe’ de Love Has Won
Amy Carlson, a “deusa mãe” de Love Has Won.

O tema “seita” é um de meus favoritos em documentários. Não tanto pela estranheza e loucura, justamente o contrário: as pessoas que terminam fazendo parte delas não são muito diferentes de mim. Parando para olhar, são humanas até demais.

Love Has Won – O Culto da Mãe Deusa (HBO, 2023), de três episódios, foi um dos mais impressionantes.

É sobre um grupo que se forma ao redor de uma texana que acredita ser a “mãe de toda a criação”, entre 2009 e 2021. Como foi uma seita pequena, a docussérie mergulha na rotina e vida das pessoas de modo mais intenso — isso também foi possível porque transmitiam as atividades na internet.

A documentarista Hannah Olson conseguiu um feito: ao mesmo tempo que a coisa toda é de uma insanidade quase inconcebível, transmite empatia e humanidade. Por exemplo, as pessoas do grupo estão quase o tempo todo chapadas de maconha, álcool e psicodélicos; acreditam em divindades extra-terrestres, consideram o ator Robin Williams um de seus profetas — junto com Donald Trump! —, além de disseminar teorias de conspiração como QAnon. Já o passado delas, principalmente o da líder, revela corações e mentes completamente arruinadas por abusos e traumas de famílias e sociedades disfuncionais. A loucura toda não é exatamente uma aberração, parece mais um sintoma coletivo que não teria como deixar de se manifestar.

Dói de tão triste. Horroroso e deprimente. E também belo e humano.

Um dos diferenciais dessa seita é que as pessoas membras quase não são abusadas, realmente se encontraram ali. Também gostei porque conheço gente indo — ou já imersa — nessa direção, em que estados alterados de consciência levam a crenças incomuns e, depois, a fanatismos e teorias da conspiração. É o que costuma ser chamado de “conspiritualidade”, não sendo nada raro entre quem usa psicodélicos.

Não sei se foi proposital da direção, mas acabei fazendo a conexão com a tragédia em que nos encontramos. Uma humanidade se autodestruindo de modo aberrante e insano. A líder do grupo várias vezes se refere a si como a “Mãe Terra”.

No final, o tema central é a busca por refúgio, por um lugar para chamar de lar, por pessoas para amar em segurança. Mas o destino está completamente contaminado. A música final dá o tom, cujo refrão é “love is strange”.

Trailer, RT.

Digressão

Fiquei pensando no costume de chamar de “seita”1 — palavra bastante pejorativa — todo grupo devotado cujas crenças desviam muito do padrão.

Não estou defendendo esses grupos, mas não é assim que toda religião começa? No fundo, a diferença relevante entre as grandes instituições religiosas e as “seitas” está no número de seguidores, já que toda crença é irracional por definição, sendo considerada bastante bizarra antes da normalização.

E tem as “seitas laicas”, como o culto a produtos, corporações, bilionários, políticos, celebridades… Ou então o culto ao progresso ou tecnologia — uma imagem idealizada de constante e infinito desenvolvimento material, mas que negligencia o próprio rastro de destruição e o subdesenvolvimento humano gritante.

Caso vivêssemos em sociedades plenas, sem a atual insanidade, e chegassem grupos dissidentes acreditando nessas coisas, na hora seriam classificadas como seitas fanáticas. Na situação atual, há uma situação exatamente inversa.

Outras obras sobre seitas

  • Livro Underground (1997), de Haruki Murakami. Foi com essa exemplar reportagem literária do consagrado romancista japonês que passei a me interessar pelo tema. Ele entrevistou ex-membras da seita espiritual apocalíptica que envenenou com gás sarin 5.800 pessoas, matando 13, em 1995 em Tokyo, e apresenta as histórias de suas vidas. Eram basicamente pessoas traumatizadas por relações, trabalho, família, sociedade etc.
  • Heaven’s Gate: The Cult of Cults (HBO, 2020), quatro episódios. Sobre o grupo norte-americano de mesmo nome, infame por suicídios coletivos em 1997. Acreditavam em divindades alienígenas e chegaram a praticar castração química para facilitar a castidade que pregavam. Trailer, RT.
  • Wild Wild Country (Netflix, 2018), seis episódios. Sobre o guru indiano Osho, também conhecido como Rajneesh. Apesar de todos os escândalos e provas, é impressionante quanta gente ainda acredita nele ou nesse tipo de figura. Até conheço diversas dessas pessoas.
  • Holly Hell (2016), longa-metragem. Sobre o grupo conhecido como Buddhafield, fundado em Hollywood nos anos 80, e seu líder obcecado com beleza física e “iluminação”. Trailer, RT.
  • Faults (2014), do diretor Riley Stearns, é um envolvente filme de ficção — que funde comédia, thriller e drama — sobre um escritor especializado em seitas que é contratado pela família de uma jovem para “desprogramá-la”. Trailer, RT.
  • O Culto (The Endless, 2017) — Filme de ficção científica e horror cósmico que já virou um cult-classic, da talentosa dupla Justin Benson e Aaron Moorhead. Dois irmãos visitam a seita onde passaram a infância. Inexplicavelmente, ninguém envelheceu e nada mudou. Pérola independente! Trailer, RT.

  1. A palavra em inglês “cult” costuma ser traduzida em português como “culto”. Esse é apenas o significado literal. Quando a palavra é usada por anglófilos para se referir a algum grupo, o significado é “seita”, na prática, sempre com o sentido de fanatismo e perigo.