Ficção anticapitalista exemplar

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capa do livro “Jonathan Abernathy You Are Kind”

Jonathan Abernathy You Are Kind (2023), de Molly McGhee, é uma sátira estupendamente triste, surreal, difícil de largar. Ficção científica distópica sobre trabalhos sem sentido, depressão, romance e solidão.

A atmosfera lembra bastante a do clássico brasileiro A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, além do filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004). Mas há um humor macabro.

Não capturei o espírito no início e abandonei nas primeiras vinte páginas. Não vi graça no tom que me pareceu depreciativo demais: o protagonista do título é embotado e miserável em todos os sentidos, e passa o tempo preenchendo a mente com afirmações de auto-ajuda, como a frase que nomeia a obra.

Ao continuar ouvindo elogios ao livro de gente que confio, tentei de novo. O que não tinha captado foi a nuance no modo como a história é narrada (no final, há revelações sobre isso). Não, a história não tira sarro das vítimas da desgraça hipercapitalista, muito pelo contrário.

O livro enfim engatou e terminei em poucos dias. Foi uma das melhores histórias distópicas que já li. Arrasa o coração sem dó, mas também há respiros preciosos, da mais terna beleza, como a sensação de encontrar um abrigo seguro e aconchegante em meio ao apocalipse. Ao terminar o livro, passei um tempo destroçado, tentando entender o que tinha me atropelado.

O protagonista Abernathy vive a realidade do endividamento terminal hoje comum nos EUA, principalmente entre jovens. No país que seria o mais rico do mundo segundo a métrica do PIB, é padrão pessoas recém-formadas em faculdades não conseguirem emprego em suas áreas, passando às vezes décadas em subempregos apenas para conseguir pagar os juros das dívidas que contraíram para estudar.

Esse não é exatamente o caso de Abernathy, sua história ainda é pior. Mas ele consegue um emprego como “auditor de sonhos”. As corporações e o governo lidam com a epidemia de distúrbios mentais (nada fictícia) com uma nova tecnologia capaz de remover os elementos perturbadores das mentes, ao invadir os sonhos noturnos das pessoas. Assim, é possível reverter a queda massiva na produtividade que ameaça a economia. De dia, Abernathy vende cachorro-quente; de noite, ao dormir, precisa mergulhar nos pesadelos e traumas de outras pessoas.

Ficção com visceral crítica política feita de modo exemplar.