… o público principal dos quadrinhos de super-heróis são meninos brancos adolescentes ou pré-adolescentes. Ou seja: garotos que estão em um momento de suas vidas em que provavelmente são extremamente imaginativos e pelo menos um pouco rebeldes, mas que estão sendo preparados para assumir posições de autoridade e poder no mundo, para serem pais, xerifes, proprietários de pequenas empresas, gerentes intermediários. O que eles aprendem com esses dramas em repetição sem fim? Bem, em primeiro lugar, que a imaginação e a rebeldia levam à violência. Em segundo lugar, que, assim como a imaginação e a rebeldia, a violência é muito divertida; em terceiro lugar, que a violência deve ser direcionada de volta contra qualquer excesso de imaginação e rebeldia para que tudo não descambe. Essas coisas precisam ser contidas! É por isso que, na medida em que é permitido que super-heróis sejam imaginativos de alguma forma, sua imaginação só pode ser estendida ao design de suas roupas, seus carros, talvez suas casas, seus vários acessórios. É nesse sentido que a lógica do enredo de super-herói é intensa e profundamente conservadora.
Esse é um trecho de um saboroso artigo de 2012, do autor anarquista e ativista David Graeber1, analisando a mensagem reacionária e ultraconservadora embutida nas histórias de super-heróis. O texto segue traduzido abaixo.
Mais particularmente, ele exemplifica como o filme Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge demonizou levantes populares descentralizados como o Occupy Wall Street — que em 2011 se espalhou pelo mundo e do qual Graeber foi um facilitador. É uma análise interessante, porque, simultaneamente à crítica, há certa paixão pelos filmes. Graeber parece um fã decepcionado. Também sou, eu adorava o Cavaleiro das Trevas de Frank Miller na adolescência.
Apesar de falar mais dos filmes do Batman dirigidos por Christopher Nolan, o padrão se aplica a praticamente todo filme de super-herói.
Há um vídeo (ingl.) que ilustra isso com os filmes da Marvel: Marvel Defenders of The Status Quo. Foi aí que cheguei ao artigo.
Pode ser contra-argumentado que são apenas filmes, que não teriam consequência política. Na verdade, os efeitos são bem palpáveis. Um singelo exemplo: algumas vezes, ao ouvir alguma condenação apaixonada e instantânea sobre protestos estudantis ou trabalhistas, vinda de alguém sem nenhuma preocupação ou formação política formal, me perguntava: “De onde será que está vindo esse reacionarismo tão inflamado?” Vem da cultura popular, mídia, filmes etc, que acabam atuando como instrumentos de doutrinação subliminar.2
Super Posição
Por David Graeber (publicado em 2012-12-08 na revista The New Inquiry)
I.
Deixe-me esclarecer uma coisa logo no início: Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, de Christopher Nolan, é realmente uma peça de propaganda anti-Occupy. Nolan, o diretor, afirma que o roteiro foi escrito antes mesmo do início do movimento e que as famosas cenas da ocupação de Nova York (“Gotham”) foram na verdade inspiradas no relato de Dickens sobre a Revolução Francesa.
Isso provavelmente é verdade, mas não é sincero. Todos sabem que os roteiros de Hollywood são continuamente reescritos enquanto os filmes estão em produção e que, quando se trata de transmitir mensagens, podem fazer toda a diferença mesmo detalhes como o local onde uma cena é filmada (“Já sei, vamos fazer com que os policiais enfrentem os seguidores de Bane bem em frente à Bolsa de Valores de Nova York!”) ou uma pequena mudança nas palavras (“vamos mudar ‘tomar o controle’ para ‘ocupar’”). Além disso, há o fato de que os vilões realmente atacam a Bolsa de Valores. Ainda assim, é exatamente essa ambição, a disposição do cineasta de enfrentar as grandes questões da época, que estraga o filme.
É triste, pois tanto Batman: O Início quanto O Cavaleiro das Trevas tiveram momentos de eloquência genuína. Nos primeiros filmes da trilogia, Nolan tem algumas coisas interessantes a dizer sobre a psicologia humana e, principalmente, sobre a relação entre criatividade e violência. O Cavaleiro das Trevas Ressurge é mais ambicioso. Ele ousa falar em uma escala e grandeza adequadas à época. E, ao fazer isso, gaguejou em incoerência.
II.
O Cavaleiro das Trevas Ressurge oferece uma oportunidade de fazer algumas perguntas potencialmente esclarecedoras sobre a cultura contemporânea. Qual é o verdadeiro objetivo dos filmes de super-herói? O que poderia explicar a súbita explosão desses filmes — tão dramática que às vezes parece que os filmes baseados em quadrinhos estão substituindo a ficção científica como o principal formato para blockbuster de efeitos especiais em Hollywood3, quase tão rapidamente quanto o filme policial substituiu o faroeste como o gênero de ação dominante nos anos 70 — ?
Por que, nesse processo, os conhecidos super-heróis de repente ganharam uma interioridade complexa: antecedentes familiares, ambivalência, crises morais e dúvidas sobre si mesmos? E por que o próprio fato de receberem uma alma parece forçá-los a escolher também algum tipo de orientação política explícita? Pode-se argumentar que isso aconteceu primeiro não com um personagem de história em quadrinhos, mas com James Bond. Casino Royale deu a Bond profundidade psicológica pela primeira vez. Logo no filme seguinte, ele estava salvando comunidades indígenas na Bolívia das malvadas multinacionais privatizadoras da água. O Homem-Aranha também partiu para a esquerda em sua última encarnação cinematográfica — assim como o Batman partiu para a direita.
De certa forma, isso faz sentido. Super-heróis são um produto de suas origens históricas. O Super-Homem é um fazendeiro deslocado da era da Depressão em Iowa; Peter Parker, um produto dos anos 60, é um garoto esperto da classe trabalhadora do Queens; Batman, o playboy bilionário, é um herdeiro do complexo militar-industrial criado, assim como ele, no início da Segunda Guerra Mundial. Mas, mais uma vez, no último filme (do Homem-Aranha), o subtexto tornou-se surpreendentemente explícito (“Você não é um vigilante”, diz o comandante da polícia, “você é um anarquista!”): especialmente no clímax, em que o Homem-Aranha, ferido por uma bala da polícia, é resgatado por um surto de solidariedade da classe trabalhadora, quando dezenas de operadores de guindastes desafiam as ordens da cidade e se mobilizam para ajudá-lo. O filme de Nolan é o mais ambicioso, mas também é o que mais obviamente falhou no resultado. Será que isso se deve ao fato de o gênero de super-heróis não se prestar a uma mensagem de direita?
III.
Vamos começar pelo início, analisando especificamente as histórias em quadrinhos de onde surgiram os programas de TV, as séries de desenhos animados e os filmes de sucesso de bilheteria. Os super-heróis dos quadrinhos foram originalmente um fenômeno de meados do século e, como todos os fenômenos da cultura pop de meados do século, são essencialmente freudianos.
Umberto Eco observou certa vez que as histórias em quadrinhos já funcionam um pouco como sonhos: o mesmo enredo é repetido, obsessiva e compulsivamente, várias vezes; nada muda; e mesmo quando o pano de fundo das histórias altera da Grande Depressão para a Guerra Mundial, e para a prosperidade do pós-guerra, os heróis, sejam eles o Super-Homem, a Mulher Maravilha, o Besouro Verde ou o Poderoso Thor, parecem existir em um eterno presente, nunca envelhecendo, sempre os mesmos.
O enredo quase sempre se aproxima do seguinte: um vilão, talvez um chefão do crime, mais frequentemente um poderoso supervilão, embarca em um projeto de dominação mundial, destruição, roubo, extorsão ou vingança. O herói é alertado sobre o perigo e descobre o que está acontecendo. Depois de provações e dilemas, no último minuto possível, o herói frustra os planos do vilão. O mundo volta ao normal até o próximo episódio, quando exatamente a mesma coisa acontece mais uma vez.
Não é preciso um gênio para descobrir o que está acontecendo aqui. Esses “heróis” são puramente reacionários, no sentido literal. Eles não têm projetos próprios, pelo menos não em seu papel de heróis: sendo Clark Kent, o Super-Homem pode estar constantemente tentando, e não conseguindo, entrar nas calças de Lois Lane, mas como Super-Homem, ele é puramente reativo. De fato, os super-heróis parecem quase totalmente desprovidos de imaginação: como Bruce Wayne, que com todo o dinheiro do mundo parece não conseguir pensar em nada para fazer com ele além de se entregar a um ato ocasional de caridade; nunca parece ocorrer ao Super-Homem que ele poderia facilmente esculpir cidades mágicas livres a partir de montanhas.
Quase nunca os super-heróis fazem, criam ou constroem algo. Os vilões, por outro lado, são infinitamente criativos. Eles são cheios de planos, projetos e ideias. Claramente, devemos primeiro, sem perceber conscientemente, nos identificar com os vilões. Afinal, eles estão tendo toda a diversão. Depois, é claro, nos sentimos culpados por isso, voltamos a nos identificar com o herói e nos divertimos ainda mais ao ver o superego golpeando o Id errante até que ele volte a se submeter.
Do ponto de vista político, as histórias em quadrinhos de super-heróis podem parecer bastante inócuas. Se tudo o que uma história em quadrinhos está tentando fazer é dizer a um grupo de adolescentes que todos têm um certo desejo de caos e desordem, mas que, em última análise, esses desejos precisam ser controlados, as implicações não parecem especialmente terríveis, principalmente porque a mensagem ainda carrega uma dose saudável de ambivalência. Afinal de contas, os heróis até mesmo dos filmes de ação mais à direita parecem passar a maior parte do tempo destruindo shopping centers suburbanos, algo que muitos de nós gostaríamos de fazer em algum momento de nossas vidas. No caso da maioria dos super-heróis dos quadrinhos, no entanto, o caos tem implicações políticas extremamente conservadoras. Para entender o motivo, é necessário fazer uma breve digressão sobre a questão do poder constituinte [que cria novas leis].
IV.
Em última análise, os super-heróis fantasiados lutam contra os criminosos em nome da lei, mesmo que eles próprios muitas vezes operem fora de uma estrutura estritamente legal. Mas no Estado moderno, o próprio status da lei é um problema. Isso se deve a um paradoxo lógico básico: nenhum sistema pode gerar a si mesmo.
Qualquer poder capaz de criar um sistema de leis não pode estar submetido a elas. Portanto, a lei tem de vir de outro lugar. Na Idade Média, a solução era simples: a ordem jurídica era criada, direta ou indiretamente, por Deus. Deus, como o Antigo Testamento deixa bem claro, não está submetido a leis ou mesmo a qualquer sistema reconhecível de moralidade, o que é lógico: se você criou a moralidade, não pode, por definição, estar amarrado a ela. As revoluções inglesa, americana e francesa mudaram tudo isso quando criaram a noção de soberania popular — declarando que o poder antes detido pelos reis agora é detido por uma entidade chamada “o povo”.
“O povo”, entretanto, está sujeito às leis. Então, em que sentido ele pode tê-las criado? Eles criaram as leis por meio das próprias revoluções, mas, é claro, as revoluções são atos de violação da lei. É totalmente ilegal pegar armas, derrubar um governo e criar uma nova ordem política. Cromwell, Jefferson e Danton certamente foram culpados de traição de acordo com as leis sob as quais cresceram, assim como certamente teriam sido se tivessem tentado fazer a mesma coisa novamente vinte anos depois.
Portanto, as leis surgem da atividade ilegal. Isso cria uma incoerência fundamental na própria ideia de governo moderno, que pressupõe que o Estado tem o monopólio do uso legítimo da violência (somente a polícia ou os guardas da prisão têm o direito legal de bater em você). Não há problema em a polícia usar a violência porque está aplicando a lei; a lei é legítima porque está enraizada na constituição; a constituição é legítima porque vem do povo; o povo criou a constituição por meio de atos de violência ilegal. A pergunta óbvia, então, é: como distinguir entre “o povo” e uma mera turba desordeira?
Não há uma resposta óbvia.
A resposta da opinião dominante e respeitável é tentar afastar o problema o máximo possível. A linha usual é: a era das revoluções acabou, exceto, talvez, em locais inóspitos como o Gabão ou a Síria, e agora podemos mudar a constituição ou as normas por meios legais. Isso, obviamente, significa que as estruturas básicas nunca mudarão. Podemos testemunhar o resultado disso nos EUA, que continuam a manter uma arquitetura de Estado, com seu colégio eleitoral e sistema bipartidário, que — embora bastante progressista em 1789 — agora nos faz parecer, aos olhos do resto do mundo, o equivalente político dos Amish, que ainda andam por aí com cavalos e carroças. Isso também significa que baseamos a legitimidade de todo o sistema no consentimento do povo, apesar do fato de que as únicas pessoas que foram realmente consultadas sobre o assunto viveram há mais de 200 anos. Nos Estados Unidos, pelo menos, “o povo” já morreu há muito tempo.
Passamos, então, de uma situação em que o poder de criar uma ordem legal deriva de Deus, para uma em que deriva de uma revolução armada, para uma em que está enraizado na pura tradição — “esses são os costumes de nossos ancestrais, quem somos nós para duvidar de sua sabedoria?” É claro que um número não desprezível de políticos americanos deixa claro que realmente gostaria de devolvê-lo a Deus novamente. Para a esquerda radical e a direita autoritária, o problema do poder constituinte está muito vivo, mas cada uma delas adota abordagens diametralmente opostas à questão fundamental da violência.
A esquerda, castigada pelos desastres do século XX, afastou-se em grande parte de sua antiga celebração da violência revolucionária, preferindo formas não violentas de resistência. Aqueles que agem em nome de algo maior do que a lei podem fazê-lo precisamente porque não agem como uma multidão desenfreada.
Para a direita, por outro lado — e isso tem sido verdade desde a ascensão do fascismo nos anos 20 — a própria ideia de que há algo especial na violência revolucionária, qualquer coisa que a diferencie da mera violência criminosa, é uma grande bobagem presunçosa. Violência é violência. Mas isso não significa que uma turba desenfreada não possa ser “o povo”, porque, de qualquer forma, a violência é a verdadeira fonte da lei e da ordem política. Qualquer uso bem-sucedido da violência é, em seu próprio sentido, uma forma de poder constituinte.
É por isso que, como observou Walter Benjamin, não podemos deixar de admirar o “grande criminoso”: porque, como muitos pôsteres de filmes dizem, “ele faz sua própria lei”. Afinal de contas, qualquer organização criminosa começa, inevitavelmente, a desenvolver seu próprio conjunto de leis internas, muitas vezes bastante elaborado. Isso é necessário, como forma de controlar o que, de outra forma, seria uma violência completamente aleatória. Do ponto de vista da direita, isso é tudo o que a lei é. É um meio de controlar a própria violência que cria a lei, e é por meio da violência que ela, no final, é garantida.
Isso facilita a compreensão da afinidade, muitas vezes surpreendente, entre bandidos, gangues criminosas, movimentos políticos de direita e o Estado representativo armado. Em última análise, eles falam a mesma língua. Eles criam suas próprias regras com base na força. Como resultado, eles geralmente compartilham as mesmas sensibilidades políticas gerais. Mussolini pode ter exterminado a máfia, mas os mafiosos italianos ainda idolatram Mussolini. Atualmente, em Atenas, há uma colaboração ativa entre lideranças do crime nos bairros pobres de imigrantes, gangues fascistas e a polícia. De fato, nesse caso, foi claramente uma estratégia política: diante da perspectiva de revoltas populares contra um governo de direita, a polícia primeiro retirou a proteção dos bairros próximos às gangues de imigrantes e depois começou a dar apoio tácito aos fascistas. Para a extrema direita, portanto, é nesse espaço — em que diferentes forças violentas que operam fora da ordem legal interagem — que novas formas de poder e, portanto, de ordem, podem surgir.
V.
O que tudo isso tem a ver com super-heróis fantasiados? Bem, tudo. Porque esse é exatamente o espaço que os super-heróis e supervilões também habitam. Um espaço inerentemente fascista, habitado apenas por gangsters, aspirantes a ditadores, policiais e bandidos, com linhas infinitamente tênues entre eles.
Às vezes os policiais seguem as leis, às vezes são corruptos. Às vezes, os próprios policiais caem no vigilantismo. Às vezes, eles perseguem o super-herói, às vezes olham para o outro lado, às vezes ajudam. Ocasionalmente, vilões e heróis se unem. As linhas de força estão sempre mudando. Se algo novo surgir, só pode ser por meio dessas forças mutantes. Não há mais nada, já que, nos universos da DC e da Marvel, nem Deus nem o Povo realmente existem.
Na medida em que há um potencial para o poder constituinte, ele só pode vir dos fornecedores de violência. Os supervilões e os gênios do mal, quando não estão apenas se entregando a atos aleatórios de terror, estão sempre planejando impor uma Nova Ordem Mundial de um tipo ou de outro. Certamente, se o Caveira Vermelha, Kang, o Conquistador, ou o Doutor Destino conseguissem dominar o planeta, muitas novas leis seriam criadas rapidamente, embora seu criador, sem dúvida, não vai se sentir preso a elas. Os super-heróis resistem a essa lógica. Eles não desejam conquistar o mundo — até porque não são monomaníacos ou insanos. Como resultado, eles permanecem parasitando os vilões da mesma forma que a polícia parasita os criminosos: sem eles, não teriam razão para existir. Eles permanecem defensores de um sistema jurídico e político que parece ter surgido do nada e que, por mais defeituoso ou degradado que seja, deve ser defendido, porque a única alternativa é muito pior.
Eles não são fascistas. São apenas pessoas comuns, decentes e superpoderosas que habitam um mundo no qual o fascismo é a única possibilidade política.
VI.
Por que, poderíamos perguntar, uma forma de entretenimento baseada em uma noção tão peculiar de política surgiria nos Estados Unidos do início à metade do século XX, exatamente na época em que o fascismo real estava em ascensão na Europa? Seria algum tipo de fantasia americana equivalente? Não exatamente. O fato é que tanto o fascismo quanto os super-heróis eram produtos de uma situação histórica semelhante: Qual é a base da ordem social quando se exorciza a própria ideia de revolução? E, acima de tudo, o que acontece com a imaginação política?
Pode-se começar considerando que o público principal dos quadrinhos de super-heróis são meninos brancos adolescentes ou pré-adolescentes. Ou seja: garotos que estão em um momento de suas vidas em que provavelmente são extremamente imaginativos e pelo menos um pouco rebeldes, mas que estão sendo preparados para assumir posições de autoridade e poder no mundo, para serem pais, xerifes, proprietários de pequenas empresas, gerentes intermediários. O que eles aprendem com esses dramas em repetição sem fim? Bem, em primeiro lugar, que a imaginação e a rebeldia levam à violência. Em segundo lugar, que, assim como a imaginação e a rebeldia, a violência é muito divertida; em terceiro lugar, que a violência deve ser direcionada de volta contra qualquer excesso de imaginação e rebeldia para que tudo não descambe. Essas coisas precisam ser contidas! É por isso que, na medida em que é permitido que super-heróis sejam imaginativos de alguma forma, sua imaginação só pode ser estendida ao design de suas roupas, seus carros, talvez suas casas, seus vários acessórios.
É nesse sentido que a lógica do enredo de super-herói é intensa e profundamente conservadora. Em última análise, a divisão entre as sensibilidades de esquerda e de direita gira em torno da atitude de cada uma em relação à imaginação. Para a esquerda, a imaginação, a criatividade e, por extensão, a produção, o poder de criar coisas novas e novos arranjos sociais, devem ser sempre celebrados. Ela é a fonte de todo o valor real no mundo. Para a direita, isso é perigoso e, em última análise, maligno. O desejo de criar também é um desejo destrutivo. Esse tipo de sensibilidade era comum no freudianismo popular da época: o Id era o motor da psique, sendo também amoral; se realmente fosse liberado, levaria a uma orgia de destruição. Isso também é o que separa os conservadores dos fascistas. Ambos concordam que a imaginação liberada só pode levar à violência e à destruição. Os conservadores querem nos defender contra essa possibilidade. Os fascistas desejam liberá-la de qualquer maneira. Eles aspiram a ser, como Hitler se imaginava, grandes artistas pintando com as mentes, o sangue e os nervos da humanidade.
Isso significa que não é apenas o caos que se torna o prazer culpado do leitor, mas o próprio fato de ter uma dimensão de fantasia na vida. E, embora possa parecer estranho pensar que um gênero artístico seja, em última análise, um aviso sobre os perigos da imaginação humana, isso certamente explicaria por que, nos sóbrios anos 40 e 50, todos pareciam sentir que havia algo vagamente sujo em ler quadrinhos. Isso também explica como, nos anos 60, tudo de repente parecia tão inofensivo, permitindo o advento de super-heróis de TV bobos e exagerados, como a série do Batman de Adam West ou os desenhos animados do Homem-Aranha nas manhãs de sábado.
Se a mensagem era de que a imaginação rebelde era aceitável desde que fosse mantida fora da política e simplesmente confinada às escolhas do consumidor (roupas, carros e acessórios), isso se tornou uma mensagem que até mesmo os produtores executivos poderiam facilmente apoiar.
VII.
Se a história em quadrinhos clássica é espetacularmente política (sobre loucos tentando dominar o mundo), de fato psicológica e pessoal (sobre a superação dos perigos da adolescência rebelde), mas, de modo último, política no final das contas, os novos filmes de super-heróis são exatamente o contrário. Eles são espetacularmente psicológicos e pessoais, de fato políticos, mas, de modo último, psicológicos e pessoais, no final.
A humanização dos super-heróis não começou no cinema. Na verdade, começou nos anos 80 e 90, dentro do próprio gênero de histórias em quadrinhos, com o Cavaleiro das Trevas de Frank Miller e o Watchmen de Alan Moore — no gênero que pode ser chamado de super-herói dark. Naquela época, os filmes de super-heróis ainda estavam trabalhando com o legado da tradição divertida dos anos 60. Pode-se dizer que o novo espírito atingiu seu auge cinematográfico em Batman: O Início, o primeiro da trilogia de Nolan. Nesse filme, Nolan essencialmente pergunta: “E se alguém como o Batman realmente existisse no mundo real? O que seria realmente necessário para que alguém quisesse se vestir de morcego e atacar criminosos?”
Não é de surpreender que drogas psicodélicas desempenhem um papel importante. O mesmo acontece com problemas graves de saúde mental e um histórico de associação com seitas religiosas bizarras. É curioso que os comentaristas do filme nunca tenham percebido o fato de que Bruce Wayne, nos filmes de Nolan, vive na fronteira da psicopatia.
Sendo ele mesmo, ele é quase completamente disfuncional, incapaz de formar amizades ou vínculos românticos, desinteressado no trabalho, a menos que este, de alguma forma, reforce suas obsessões mórbidas. O herói era tão obviamente insano, e o filme era tão obviamente sobre sua batalha contra a própria loucura, que não é um problema o fato de os vilões serem apenas uma série de apêndices do ego, especialmente no primeiro filme da trilogia: Ra's al Ghul (o pai mau), o Chefão do Crime (o empresário bem-sucedido), o Espantalho (que enlouquece o empresário). Não há nada de particularmente atraente em nenhum deles, mas isso não importa: todos são apenas fragmentos e peças do quebra-cabeça da mente despedaçada do herói. Como resultado, há obviamente uma mensagem política. Pelo menos é o que parece. Quando se cria um filme a partir de personagens tão incrustados no mito e no histórico do cânone, nenhum diretor tem controle total sobre seu material.
No filme, Ra's al Ghul inicia Batman na Liga das Sombras em um monastério no Butão e só então revela seu plano de destruir Gotham para livrar o mundo de sua corrupção. Nos quadrinhos originais, descobrimos que Ra's al-Ghul — um personagem apresentado, surpreendentemente, em 1971 — é, na verdade, um primitivista e eco-terrorista zerzaniano, determinado a restaurar o equilíbrio da natureza reduzindo a população humana da Terra em aproximadamente 99%. Nenhum dos vilões em nenhum dos três filmes quer dominar o mundo. Eles não desejam ter poder sobre os outros ou criar novas regras de qualquer tipo. Até mesmo seus capangas são expedientes temporários — eles sempre planejam matá-los no final.
Em resumo, os vilões de Nolan são sempre anarquistas, mas são sempre anarquistas muito peculiares, de um tipo que parece existir apenas na imaginação do cineasta. Eles são anarquistas que acreditam que a natureza humana é fundamentalmente má e corrupta. O Coringa, o verdadeiro herói do segundo filme, torna tudo isso explícito: ele é o Id tornado filósofo.
O Coringa não tem nome, não tem outra origem a não ser aquela que ele inventa caprichosamente em determinada ocasião, e nem mesmo fica claro quais são seus poderes. No entanto, ele é, inexoravelmente, poderoso. O Coringa é uma força pura de autocriação, um poema escrito por ele mesmo. Seu único propósito na vida parece ser uma necessidade obsessiva de provar aos outros, em primeiro lugar, que tudo é e só pode ser poesia — e, em segundo lugar, que poesia é o mal.
VIII.
Então, aqui estamos de volta ao tema central dos primeiros universos de super-heróis: uma reflexão prolongada sobre os perigos da imaginação humana, sobre como o desejo do próprio leitor de mergulhar em um mundo movido por imperativos artísticos é a prova viva de que a imaginação deve ser sempre cuidadosamente contida.
O resultado é um filme emocionante, com um vilão agradável — ele está obviamente se divertindo com isso — e genuinamente assustador. O filme Batman: O Início estava apenas cheio de pessoas falando sobre medo. O Cavaleiro das Trevas de fato produziu algum. Mas até mesmo esse filme começa a ficar sem efeito no momento em que aborda a política popular. O final, quando Bruce e o comissário Gordon resolvem planejar o bode expiatório do Batman e criar um falso mito em torno do martírio de Harvey Dent, é nada menos que uma confissão de que a política é idêntica à arte da ficção. O Coringa estava certo: a redenção está apenas no fato de que a violência, o engano, pode se voltar contra si mesmo. Nolan teria feito bem em deixar as coisas assim.
O problema é que essa visão da política simplesmente não é verdadeira. A política não é apenas a arte de manipular imagens, apoiada pela violência. Não é apenas um duelo entre produtores diante de um público que acreditará em quase tudo se for apresentado com talento suficiente. Sem dúvida, isso deve parecer assim para os diretores de cinema extraordinariamente ricos de Hollywood, mas entre a filmagem do primeiro e do segundo filme, a história interveio de forma bastante decisiva para mostrar o quanto essa visão está errada.
A economia entrou em colapso. Não por causa das manipulações de alguma sociedade secreta de monges guerreiros, mas por causa de um grupo de gerentes financeiros que, vivendo no mesmo mundo da bolha de Nolan e compartilhando suas suposições sobre a infinidade da manipulabilidade popular, acabaram se mostrando errados. Houve uma resposta popular em massa. Ela não tomou a forma de uma busca frenética por salvadores messiânicos, misturada com surtos de violência niilista: cada vez mais, tomou a forma de uma série de movimentos populares reais, até mesmo movimentos revolucionários, derrubando regimes no Oriente Médio e ocupando praças em todos os lugares, de Cleveland a Karachi, tentando criar novas formas de democracia.
O poder constituinte havia reaparecido, e em uma forma imaginativa, radical e notavelmente não violenta. Esse é exatamente o tipo de situação que um universo de super-heróis não pode resolver. No mundo de Nolan, algo como o Occupy só poderia ser o produto de um pequeno grupo de manipuladores engenhosos que na verdade estão trabalhando com alguma agenda secreta.
A série Batman realmente deveria ter deixado esses tópicos de lado, mas aparentemente Nolan não conseguiu se conter. O resultado é quase totalmente incoerente. O enredo é complicado e mal vale a pena ser contado. Um empresário rival contrata a Mulher-Gato para roubar as impressões digitais de Bruce Wayne para que ele possa usá-las para roubar todo o seu dinheiro, mas na verdade ele está sendo manipulado por um supervilão mercenário que usa uma máscara de gás chamado Bane. Bane é mais forte do que o Batman, mas está apaixonado pela filha de Ra's al-Ghul, Talia, e foi desfigurado devido aos maus-tratos sofridos na juventude em uma prisão semelhante a uma masmorra, com o rosto invisível por trás de uma máscara que precisa usar continuamente para não entrar em colapso com dor agonizante. Na medida em que o público se identifica com um vilão como esse, só pode ser por simpatia. Ninguém em sã consciência gostaria de ser Bane.
Presumivelmente, porém, esse é o objetivo: um alerta contra os perigos da simpatia indevida pelos desafortunados. Porque Bane também é um revolucionário carismático que, depois de se livrar do Batman, revela que o mito de Harvey Dent é uma mentira, liberta os habitantes das prisões de Gotham, aprisiona quase toda a força policial nos subterrâneos e libera sua população sempre impressionável para saquear e queimar as mansões do 1%, arrastando-os para os tribunais revolucionários. O Espantalho, de forma divertida, reaparece como Robespierre. Eventualmente, porém, Bane pretende matar todos eles com uma bomba nuclear convertida de algum projeto de energia verde. A razão para isso ainda não está clara.
Por que Bane deseja liderar o povo em uma revolução social se, de qualquer forma, ele vai explodir todos eles em algumas semanas? Quem vai adivinhar… Ele afirma que, antes de destruir alguém, primeiro é preciso dar esperança a essa pessoa. Então, a mensagem é que sonhos utópicos só podem levar à violência niilista? Presumivelmente algo assim, mas é singularmente pouco convincente, já que o plano de matar todo mundo veio primeiro, e a revolução foi uma reflexão decorativa posterior. De fato, o que acontece com a cidade só pode fazer sentido como um eco material do que sempre foi mais importante: o que está acontecendo no cérebro torturado de Bruce Wayne.
No final, Batman e a polícia de Gotham se levantam de suas respectivas masmorras e unem forças para combater os malignos Ocupadores do lado de fora da Bolsa de Valores, Batman finge sua própria morte ao se livrar da bomba e Bruce acaba ficando com a Mulher-Gato em Florença. Nasce uma nova falsa lenda de um mártir e o povo de Gotham é pacificado. Em caso de mais problemas, temos a garantia de que há também um herdeiro em potencial do Batman, um policial desiludido chamado Robin. O filme finalmente termina e todos respiram aliviados.
IX.
Se é para haver uma mensagem para levar para casa de tudo isso, ela deve ser algo como: “Sim, o sistema é corrupto, mas é tudo o que temos e, de qualquer forma, é possível confiar em figuras de autoridade se elas tiverem sido castigadas e passado por sofrimentos terríveis.” A polícia normal deixa crianças morrerem em pontes, mas policiais que foram enterrados vivos por semanas podem usar a violência de forma legítima. A caridade é muito melhor do que tratar de problemas estruturais. Qualquer tentativa de resolver problemas estruturais, mesmo por meio de desobediência civil não violenta, é de fato uma forma de violência, porque é só isso que pode ser. Políticas imaginativas são inerentemente violentas e, portanto, não há nada de inadequado se a polícia responder esmagando a cabeça dos manifestantes repetidamente contra o concreto.
Como resposta ao Occupy, isso é nada menos que patético. Quando O Cavaleiro das Trevas foi lançado em 2008, houve muita discussão se o filme todo na verdade era uma grande metáfora para a guerra contra o terrorismo: até que ponto os mocinhos (os Estados Unidos, obviamente) podem adaptar os métodos dos bandidos? Os responsáveis pelo filme conseguiram responder a essas questões e ainda produzir um bom filme. Isso se deve ao fato de que a Guerra ao Terror foi, na verdade, uma batalha de redes secretas e espetáculos manipuladores. Ela começou com uma bomba e terminou com um assassinato. Quase se pode pensar nela como uma tentativa, de ambos os lados, de realmente colocar em prática uma versão HQ do universo.
Quando o poder constituinte real entrou em cena, esse universo se recolheu em incoerência. As revoluções estavam varrendo o Oriente Médio e os EUA ainda estavam gastando centenas de bilhões de dólares para combater um bando de estudantes de seminário no Afeganistão. Infelizmente para Nolan, apesar de todos os seus poderes de manipulação, a mesma coisa aconteceu com seu mundo quando um mero indício de poder popular real chegou a Nova York.
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Leia mais sobre Graeber em Você é anarquista? A resposta pode te surpreenderVocê é anarquista? A resposta pode te surpreender
O artigo abaixo é um pequeno clássico de David Graeber, um dos poucos autores anarquistas1 cuja influência rompeu e bolha para muito além do ativismo. Seus livros entraram nas listas de best-sellers e até hoje são amplamente comentados. Entre eles,…. ↩ -
Cinema é um dos meios mais eficazes de invadir o cérebro. Comerciais antes dos filmes dão muito mais retorno do que em outras mídias. Outro dia mesmo, acabei comendo num fast-food que jamais experimentaria, se não tivesse visto a publicidade dentro da privação sensorial de uma sala de cinema — o impulso ficou lá latejando até ser satisfeito. ↩
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Hoje, isso já é fato consumado. ↩