Dias Perfeitos (Perfect Days, 2023) é um filme sobre a rotina idílica e minimalista de um faxineiro público em Tokyo, dirigido pelo consagrado alemão Wim Wenders.
Cult-classic instantâneo. O personagem Hirayama não tem internet ou TV, ouve fitas cassete, tira fotos analógicas de uma árvore e lê antes de dormir. Apesar de limpar privadas todo dia, está satisfeito, aprecia cada pequena coisa ou interação1. O apelo de tal simplicidade nunca foi tão grande.
Mas não é um equilíbrio pleno. Fica implícito que ele está fugindo ou evitando algo do passado, talvez ligado à família. Sonha toda noite com sombras.
Também adorei o filme porque conheço de perto Tokyo, foi a melhor homenagem cinematográfica que já vi.
Dias Perfeitos estava em minha lista há um tempo. Além das resenhas elogiando, amigos recomendavam. Esse texto no Ideias de Chirico foi a gota d’água que me fez assistir.
Antes de ver, cheguei a ler por cima essa crítica negativa na revista socialista Jacobin. Apesar de haver um ponto no escapismo que a resenha denuncia, ela espetacularmente ignora particularidades da sociedade japonesa que fazem a diferença.
Vou listar algumas, em um contexto que pode ajudar a apreciar melhor o filme.
Apesar do ultraconsumismo2 da sociedade japonesa, seu capitalismo é único, chamado de “capitalismo coletivo”. A competição é muito menos predatória. As grandes empresas têm ações umas das outras, ou seja, elas cooperam. Não estou dizendo que seja o sistema ideal, mas é melhor do que o mata-mata padrão.
É reflexo de um agudo senso de comunidade. As pessoas realmente vivem e pensam cooperativamente. Esse é o fator que mais chama a atenção entre ocidentais que vão viver lá. Também há aspectos negativos; por exemplo, pessoas com impulsos mais individualistas podem se sentir sufocadas ou anuladas, ou então, a priorização do trabalho e a empresa — como uma obrigação social — em relação à família nem chega a ser questionada.
A sociedade japonesa também é muito menos desigual. Frequentemente o diretor da corporação divide o banco de metrô com o porteiro. Há também a tradição da faxina coletiva nas empresas, em que até o presidente se junta ao mutirão e limpa privadas.
Pode parecer, mas o faxineiro Hirayama não é exatamente pobre no filme. Sua casa nos parece minúscula, mas na verdade é até maior do que os apartamentos mais comuns em Tokyo. O salário dele também seria mais alto que o de pessoas razoavelmente bem empregadas no Brasil, já descontando o custo de vida mais elevado. Trabalhos braçais ou “sujos” remuneram mais no Japão, por serem evitados. Ele também não ganha muito menos do que receberia num emprego de escritório, mesmo em Tokyo. A classe trabalhadora “humilde” não é rebaixada e desrespeitada como no Ocidente.
O fato de Hirayama ir ao banho coletivo todo dia também não é sinal de pobreza. Tais banhos são quase como uma terapia, além de uma ancestral forma de socialização — a conversa faz parte, como no cabelereiro ou barbeiro. Outro indicador de um tipo de privilégio é ele comer na rua todo dia.
A crítica de que o escapismo de Hirayama seria um sonho exótico de elite, invertidamente, procede. Porque ele de certa forma é rico, além de bem-educado. Só que ler e apreciar uma edição de bolso de William Faulkner não é um privilégio especial no Japão. Lá, mendigos leem livros — muitos deles estão na rua quase que opcionalmente (por neuroses, grandes decepções etc), não foram forçados pelo sistema econômico.
Pode parecer que estou elogiando o Japão como um tipo de sociedade ideal. Não. É um lugar fascinante, outro mundo — não tem roubos!3 —, mas há diversos problemas gritantes, como o racismo e o patriarcalismo enraizados mais profundamente, e o imperialismo. A extrema-direita também é mais extrema lá há muitas décadas, muito antes da atual renascença mundial da praga.
Um detalhe mais de passagem que me veio à mente: o filme pode dar a impressão de que banheiros públicos japoneses são limpos e sofisticados. Aqueles são parte de um projeto especial de arquitetura do bairro mais moderno de Tokyo, Shibuya. Em muitos dos banheiros comuns, nem privada tem — a forma tradicional antiga é se agachar em um vaso embutido no piso. Os banheiros dos metrôs, em particular, costumam virar um cenário horripilante lá pelas 21h, quando funcionários de escritório voltam embriagados da happy-hour diária — que é praticamente obrigatória (ou seja, o alcoolismo é institucionalizado). Não é raro encontrá-los balbuciando gemidos ou semi-desmaiados nos banheiros.
Voltando ao filme, em resumo, o personagem não é miserável, conforme os padrões japoneses, nem se destaca muito de seus pares, como alguém mais culto. Não é um filme apenas sobre uma pessoa excêntrica, mas também sobre uma sociedade.
Dias Perfeitos me lembrou de porque adorava Wim Wenders. Cheguei a ver tudo dele na época da faculdade. Agora quero rever alguns.
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Um ótimo artigo (em inglês) da revista Psyche sobre a filosofia dessa experiência, que cita esse filme: The most profound wonder is stirred by what is most ordinary. ↩
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Pode parecer uma rotina maquinalmente degradante comprar café enlatado em uma máquina na frente de casa toda manhã, como aparece no filme. Mas essa é uma realidade há muitas décadas no Japão, de forma mais intensa que em outros países. Essas máquinas estão por toda parte e vendem de tudo. Muita gente que viveu lá sente saudade delas, como eu. ↩
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Exemplo: mesmo em Tokyo, mas na periferia, algumas casas tem hortas. A produção que não será consumida é colocada em uma mesa na frente da casa, sem ninguém tomando conta. Quem compra pega o que quer e deixa o dinheiro numa caixinha. ↩