Philip K. Dick ficou ruim por ser tão bom

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capa do livro “Ubik”, de Philip K. Dick, com montagem surrealista colorida

Desculpem o título, mas foi o que pensei após sentir certa decepção ao reler Ubik (1969), resistindo à primeira impressão de que o livro envelheceu mal. Depois do sucesso de Matrix (1999), a ideia de estarmos vivendo em uma realidade falsa virou lugar-comum — a pílula que nos faria acordar já é até símbolo de machistas reacionários “red pill”.

A visão do escritor Philip K. Dick se entranhou de tal maneira na cultura que talvez alguns de seus livros tenham perdido parte do impacto existencial. Ficou ruim por ser tão bom.

Li Ubik pela primeira vez na adolescência, muito antes de Matrix. Atingiu-me tanto que considerava seu melhor livro. A releitura só não cumpriu minha exagerada expectativa, está bem longe de ser um livro ruim. Na verdade, é uma de suas histórias mais profundas política e existencialmente, após uma análise do símbolo principal, o produto Ubik, um tipo de remédio anunciado como a panaceia absoluta.

A história gira em torno de outra tecnologia, que preserva uma parte da mente após a morte, se o cadáver for encapsulado. A pessoa não sobrevive, mas também não morre, fica em um limbo — um tipo de sonho em loop — e, às vezes, pode interagir com parentes, além de chefes e empregados (a descoberta de como vencer a morte, claro, é capitalizada para otimizar a produtividade).

O tom de sátira é explícito, diferentemente de outros do autor, que tiram sarro de forma sutil. Por exemplo, o protagonista na penúria não tem dinheiro nem para usar a porta alugada de seu apartamento, que exige moedas para abrir e fechar (mais ou menos como tudo hoje exige uma mensalidade).

Nessa sociedade distópica, há também um embate de telepatas e precogs (com precognição) de corporações com as pessoas normais, que precisam contratar tecnologias para se defender dessas habilidades e manter a privacidade de seus pensamentos.

E paira uma misteriosa analogia teológica sobre o bem e o mal — a palavra “ubik” vem de “ubíquo”, um sinônimo para “onipresente” com boa carga religiosa.

Foi uma surpresa me sentir decepcionado com a atmosfera de ficção barata carregada — não senti isso nem um pouco na primeira vez que li. Mas, como já disse, boa parte se deve às ideias de Dick terem se mesclado à cultura pop.

Em todo caso, quem gosta de ficção científica mais doidona não vai se decepcionar.