Segue a transcrição traduzida1 de uma curta aula que resume o pensamento do filósofo holandês Spinoza. É a explicação mais clara e abrangente que já vi, mesmo entre textos — apesar de ainda poder ser desafiadora.
O professor é o filósofo Peter Sjöstedt-Hughes, da Universidade de Exeter (UK), que acompanho por tratar também da filosofia de experiência psicodélicas.
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Spinozismo – sinopse
escrito e lido por, atenciosamente,
Peter Sjöstedt-Hughes, 2021
Baruch — mais tarde Benedictus — de Spinoza foi um filósofo que viveu de 1632 a 1677 na Holanda. Ele era de origem judaica sefardita, embora tenha sido excomungado pela comunidade judaica de Amsterdã aos vinte anos devido a suas opiniões.
Ele foi publicado de forma anônima e póstuma. Seus livros foram proibidos pela igreja apenas um século após sua morte. Após a controvérsia sobre o panteísmo na década de 1780, seus escritos passaram a ser estudados abertamente.
Spinoza publicou obras sobre a filosofia de Descartes, sobre política e teologia, incluindo um livro altamente polêmico que envolvia crítica bíblica, mas o mais importante é que ele escreveu sobre metafísica.
A Ética foi sua última obra, uma obra-prima, na qual estava contida sua metafísica, este sistema de explicação da realidade, um sistema que influenciou muitos pensadores — notadamente Goethe, Hegel, Schopenhauer, Wordsworth, Nietzsche, Borges, Whitehead, Næs, Deleuze e Einstein, que chamou Spinoza de “o maior dos filósofos modernos”.
A seguir estão os princípios básicos do spinozismo ou, mais especificamente, da metafísica de Spinoza.
Monismo
Substância
Há uma substância, uma realidade subjacente que pode ser expressa em um número infinito de maneiras.
Atributos
Essas expressões, abstrações ou aspectos são chamados de atributos. Cada atributo é infinito em si mesmo. Seres humanos têm acesso a apenas dois atributos: pensamento e extensão, que são — a grosso modo — mente e matéria, ou melhor, senciência e espaço físico.
Modos
Cada instância específica é chamada de um modo ou modificação. Um objeto físico específico é um modo do atributo de extensão. Um estado mental específico é um modo do atributo de pensamento.
Nota: Para Spinoza, mente e matéria não são duas substâncias separadas, como foi proposto por Descartes, mas, em vez disso, mente e matéria são duas maneiras de compreender a mesma substância. Portanto, não pode haver interação, emergência ou causação descendente entre mente e matéria, assim como não pode haver interação entre Hesperus e Vênus, porque ambos os nomes se referem ao mesmo planeta.
Panteísmo
Essa substância única, Spinoza chama de “deus ou natureza”, em parte porque essa única realidade existente deve ter o atributo de extensão “espaço infinito”, em paralelo com seu atributo de pensamento “intelecto infinito”.
Ou seja, Spinosa acrescenta o atributo da fisicalidade à noção do ser perfeito, completando-o assim, tornando deus imanente, em vez de transcendente.
A alegação de Spinoza de que tudo (“pan”) é deus (“theos”) foi nomeada como panteísmo pelo matemático Joseph Rafson, 20 anos após a morte de Spinoza. Rafsson contrastou o panteísmo com o pan-niilismo, a visão de que tudo é matéria não senciente.
Nota 1: Ao identificar deus com a natureza, Spinoza foi acusado de ateísmo. Entretanto, considerar o intelecto infinito como um aspecto do universo deveria sugerir o contrário. De fato, Novalis se referiu a Spinoza como “intoxicado com deus”. Entretanto, o deus de Spinoza não era pessoal. O intelecto infinito é um símile da mente humana, assim como o espaço infinito é um símile do corpo humano — ou seja, radicalmente diferentes.2
Nota 2: A natureza de Spinoza não é meramente física, mas também inclui a infinidade de outros atributos, inclusive o pensamento. Assim, aqueles que acusaram Spinoza de ser um materialista também erraram o alvo. Panteísmo não é pan-niilismo. Matéria é apenas uma expressão da realidade, é apenas uma abstração ou extração — ou seja, separada. Da mesma forma, aqueles que chamam Spinoza de idealista também erram o alvo, pois a mente não é produtora de matéria, mas igualmente expressiva da substância fundamental.
Nota 3: Substância, natureza e deus são, portanto, sinônimos.
Pampsiquismo
Toda matéria, não apenas a matéria animal complexa, portanto, é uma expressão ou atributo da substância-natureza-deus. Assim, tudo (“pan”) que existe fisicamente deve ter seu atributo mental paralelo (“psique”).
Consequentemente, vemos que o monismo de Spinoza implica um pampsiquismo, que todas as coisas têm mente. Já que elas são fundamentalmente idênticas, a mente não pode ter surgido da matéria, no passado animal; nem a mente pode surgir da matéria, no presente; nem diacronicamente, durante a gestação; nem sincronicamente, do cérebro extensivo para a mente pensante. Essa crença comum revela um dualismo inerente e involuntário.
Como mente e matéria são apenas expressões diferentes da mesma realidade subjacente, seria esperado encontrar correlatos neurais da consciência, e mudanças mentais acompanhando as mudanças corporais, por meio de danos cerebrais, ingestão de substâncias químicas etc, conforme é o caso.
Em sua essência, não há nada de anticientífico no spinozismo, desde que se distingua a ciência como método de qualquer sistema de crença dogmática, como a materialista — e, portanto, inconscientemente dualista — ainda observada na biologia, uma manifestação do legado cartesiano.
Uma mente — e, portanto, um ser — é essencialmente individualizada por ter um conatus, um esforço para persistir em seu próprio ser. A compreensão do bem e do mal é relativa a esse conatus. O que é bom para um ser é o que ajuda esse ser a persistir, o que é mau é o que impede esse conatus.
Não há bem ou mal objetivo absoluto que exista fora da substância-natureza-deus, pois isso é tudo o que existe. Spinoza é um nominalista3, e não um platonista, nesse aspecto.
No entanto, Spinoza observa que o altruísmo muitas vezes serve ao conatus, por meio da civilização. A amizade e a alegria, o comércio e a infraestrutura, a bondade e a dignidade frequentemente ajudam tanto o indivíduo quanto a sociedade, mas, de modo último, o poder está certo4. A ética de Spinoza é descritiva e naturalista, não prescritiva e transcendental.
Monismo neutro
Pelo fato de mente e matéria serem paralelas, é possível chamar o spinozismo de pampsiquismo, pois todas as coisas têm mentes. Isso também é chamado de paralelismo. Entretanto, considerando que a substância-natureza-deus tem uma infinidade de atributos infinitos além da mente e da matéria, o termo monismo neutro também serve como uma designação justa do spinozismo.
Mente e matéria são atributos igualmente fundamentais da realidade, mas a realidade (substância-natureza-deus) — com seus outros atributos igualmente fundamentais, mas desconhecidos — é mais do que mente e matéria. Assim, o sufixo “neutro” [do monismo] do spinozismo não se refere a alguma outra coisa que não mente ou matéria, mas a algo mais do que mente ou matéria5. Portanto, não há contradição em manter simultaneamente aqui um pampsiquismo e um monismo neutro.
Da parte para o todo
Determinismo e fatalismo
Há duas razões principais pelas quais Spinoza rejeita o livre-arbítrio e endossa o determinismo e o fatalismo. Em primeiro lugar, com relação ao determinismo, o livre-arbítrio é rejeitado porque a substância-natureza-deus é perfeita, completa e, portanto, tem leis invioláveis da natureza que não podem ser transgredidas.
Embora hoje em dia muitas vezes formulemos essas leis em termos puramente físicos, como o físico é paralelo ao mental, essas leis também pertencem à mente. Spinoza escreve que, embora na maioria das vezes ignoremos as causas de nossas ações e pensamentos, isso não é uma licença para acreditar que nossas ações e pensamentos são sem causa, indeterminados e, portanto, livres.
Para Spinoza, tanto mente quanto matéria não são transparentes, elas são insuficientemente conhecidas, tanto em si mesmas quanto em sua etiologia6. Mente e matéria são abstrações de uma realidade mais completa, mais concreta e substancial, que tem uma nomologia7 definida, que nenhum ser é livre para alterar. O livre-arbítrio é rejeitado pelo mesmo princípio pelo qual milagres são rejeitados.
A segunda razão pela qual Spinoza rejeita o livre-arbítrio se deve ao fatalismo que surge naturalmente, porque a substância-natureza-deus, em sua realidade independente da mente humana, é eterna, atemporal, perfeita e, portanto, é um ser completo, indivisível e imutável. Duração é meramente nossa maneira de perceber essa realidade eterna por meio da extensão e do pensamento.
O spinozismo é um monismo não apenas em relação a deus, natureza, mente e matéria, mas também um monismo de passado e futuro. Consequentemente, nossas mentes não são livres para alterar o futuro.
Nota 1: Não há livre-arbítrio, mas há causação mental, assim como há causação física. A causação física é determinada. Portanto, a causação mental deve ser determinada, pois são paralelas. Mas é preciso acrescentar que por “causação mental” não se entende causação do aspecto psicológico para o físico, pois isso implicaria em um dualismo psicofísico. Não há causação psicofísica nem causação psicológica-física, mas apenas uma causação do psicofísico para o psicofísico, no que diz respeito a seres humanos.
Nota 2: Spinoza defende que se obtenha liberdade sobre os afetos ou as emoções que nos fazem sofrer, ou seja, as paixões. Essa liberdade é determinada pela leitura e pelo raciocínio sobre os problemas psicológicos próprios e alheios. O livro Ética contém muitas análises sobre essas questões e, portanto, apresenta-se em parte como um texto que antecipa a psicologia moderna e estudos posteriores sobre o funcionamento do subconsciente. No entanto, de modo mais fundamental do que a prática atual, Spinoza entrelaça simbioticamente a psicologia com uma metafísica fatalista maior. De forma aparentemente paradoxal, quanto mais a pessoa percebe que tudo é necessário, mais livre ela se torna. Já que a pessoa se liberta do sofrimento do remorso, da culpa, da raiva, da inveja etc, ela mesma não tem culpa de nada, porque tudo o que acontece é necessário, não contingente. É claro que ler e raciocinar sobre essas coisas é determinado por causas anteriores, portanto, a liberdade é determinada pela necessidade, e perceber a necessidade determina a liberdade. A obra-prima de Spinoza é chamada de Ética porque promove uma ética da virtude, promovendo um poderoso estado de espírito estável, uma paz de espírito abençoada. Como afirma Spinoza, “virtude é poder”, retornando o termo às suas origens.
Imortalismo
Como não há dualismo entre mente e corpo, não pode haver mente nem alma que exista como tal após a morte do corpo. Essa é uma consequência do paralelismo mente-matéria que o monismo de Spinoza implica. No entanto, no final da Ética, Spinoza solta uma frase que tem perturbado a maioria dos acadêmicos de Spinoza. Spinoza escreve: “A mente humana não pode ser absolutamente destruída com um corpo, mas algo dela permanece, que é eterno.”8
Spinoza continua a explicar que há três tipos de conhecimento. Em primeiro lugar, opinião — sensação, imaginação. Em segundo lugar, razão — conceitualização e inferência. E, em terceiro lugar, intuição.
Ele escreve que a intuição é difícil e rara, mas, se alcançada, expõe a pessoa à realidade concreta além da abstração que nós, humanos, comumente percebemos. No auge desse estado, a pessoa se une a deus-natureza. O intelecto finito e o intelecto infinito se unem. Como deus é fundamentalmente eterno, imortal, a pessoa se torna temporariamente eterna. Esse estado de ser é chamado por Spinoza de “o amor intelectual de deus”.
Spinoza explicou em uma obra anterior que há dois tipos de paralelismo: o da mente com o corpo e o da mente com a substância-natureza-deus. O amor intelectual por deus ou natureza atenua o medo da morte. Essa é sua virtude ética instrumental, além de seu valor intrínseco. No entanto, os detalhes que Spinoza fornece para esse estado máximo de ser são ambíguos e, portanto, têm sido interpretados de várias maneiras, desde a rejeição até o misticismo.
Esta sinopse é sobre o pico da cordilheira observado acima das nuvens, mas mesmo aqui a pessoa começa a penetrar a parcimônia do spinozismo, sua harmonia, sua poderosa coerência, tanto em si mesmo quanto em relação ao mundo que vemos. Além disso, o fundador da ecologia profunda, o filósofo norueguês Arne Næs, considerou o spinozismo vital como uma abordagem para nossas profundas questões ecológicas, em termos do respeito que ele confere à natureza. O spinozismo é a apoteose do naturalismo. Ele vê a natureza como viva, com seu próprio valor intrínseco. Assim, o spinozismo é uma metafísica friamente lógica, mas também aquecida com virtudes boas para nós mesmos, nossa ciência e nosso mundo.
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Transcrição em inglês: Spinozism — SynopsisSpinozism — Synopsis
English original version of the post Resumo do pensamento de Spinoza, as it is not available elsewhere in text, a hard to find clear and comprehensive summary of Spinoza’s philosophy. It’s a transcript of a short talk by Peter Sjöstedt-Hughes,…. ↩ -
A palavra “símile” é usada para comparar coisas diferentes. ↩
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No nominalismo, objetos universais ou abstratos só existem como nomes; no platonismo, eles existem de fato. ↩
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“Might is right”, expressão que significa “aquilo que é mais poderoso determina o que é certo (ou errado)”, nesse caso, deus-natureza. ↩
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A neutralidade do monismo neutro significa que a substância única é neutra, não é nem matéria, nem mente. Essa neutralidade, no spinozismo, não implica que os atributos mente e matéria sejam falsos mas, sim, que eles não são os únicos. Neutral Monism (em inglês). ↩
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Estudo da causalidade ou originação. ↩
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Ciência das leis, na filosofia. ↩
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Não vejo muito mistério nessa afirmação. Se a mente humana é apenas um modo do atributo “intelecto infinito”, com o fim desse modo, a morte, o atributo continua existindo, obviamente, assim como a substância. ↩