Faroeste existencial

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capa de “Todos os Belos Cavalos”, com textura de madeira velha ao fundo das palavras

Todos os Belos Cavalos (1992), de Cormac McCarthy, é o primeiro volume da Trilogia da Fronteira, um épico “faroeste existencial”, como costuma ser chamado.

Só mesmo a prosa mitológica de Cormac para me fazer ler um faroeste. “Faroeste” apenas na caracterização e cenário, a fronteira EUA-México nos anos 40. Não há justiceiro enfrentando bandido depois de uns goles no saloon. Tem sim algum tiroteio, mas o foco da história é a jornada por zonas limítrofes, também no sentido metafórico. Fazendo jus ao título, não faltam cavalos em toda a sua profunda dimensão.

Inconformados com a perspectiva de suas vidas, dois rapazes de 16 anos abandonam os EUA em direção ao México. Encontram um menino mais insano e novo que eles, tendo então que lidar com as consequências.

Li o livro depois do volume 2, A Travessia1, achando que estava relendo-o. Na juventude, um exemplar em inglês de Todos os Belos Cavalos acumulou poeira na estante a ponto de achar que já tinha lido, talvez o confundindo com o assombroso Meridiano Sangrento. Percebi logo que estava lendo pela primeira vez.

Comparando com o 2, é mais convencional — no sentido de cumprir expectativas —, aventuresco e até romântico, mas não como defeito. É um livraço! A questão é que A Travessia é cativantemente sombrio, tocando temas mais no núcleo da existência humana; fica até difícil chamá-lo de “faroeste”, apesar do cenário idêntico e das explosões de violência.

O autor consegue ser um estilista incomparável na prosa, sem soar afetado ou pedante. Quem mais escreveria frases assim?

Na hora de que sempre gostava quando as sombras se alongavam e a antiga trilha se estendia à sua frente na luz rósea e enviesada como um sonho do passado em que os potros pintados e os cavaleiros daquela nação perdida desciam do norte com os rostos caiados e os compridos cabelos em tranças e todos armados para a guerra que era a vida deles e as mulheres e crianças e as mulheres com crianças de peito todas juradas de sangue e só em sangue redimíveis.

A tradução de Marcos Santarrita é excelente.

Um porém inegável é que, como brinca uma amiga, é um “livro de menino”. Não que dissemine machismo ou chauvinismo, pelo contrário. Mas predomina aquele estilo de desbravamento heroico, com tudo o que vem junto, geralmente associado à masculinidade. Não tem problema, já que sou “menino” também.


  1. Contornos míticos da realidadeContornos míticos da realidade
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