Distopia presciente

>

capa do livro “A Parábola dos Talentos”, com ilustração de uma flor saindo de uma pistola, à frente de um fundo desértico

Em A Parábola dos Talentos (Parable of The Talents, 1998, 560 págs.), Octavia Butler conclui a duologia distópica iniciada com A Parábola do Semeador1, sobre a vida de uma líder espiritual laica em um mundo que começa a ruir.

São livros muito atuais por tratarem de colapso socioambiental, conflitos raciais e religiosos, e a volta do fascismo e da escravização. Escrevendo nos anos 90, Butler projetou o início do fim das sociedades como conhecemos para mais ou menos a época atual.

Esse livro começa cinco anos depois do final do primeiro, quando a protagonista Lauren Olamina chega ao local de sua futura comunidade alternativa. É sobre o recrudescimento social que essa comunidade enfrenta após a eleição de um presidente estadunidense que é a cara de Trump, mas com um cristianismo ainda mais fanático e agressivo. Até o slogan “torne a América grande de novo” é o mesmo — que Trump reciclou de Ronald Reagan.

Assim como o primeiro livro, é pesado, com um nível de violência acima do normal, incluindo tortura, estupros e diversos tipos de execução.

A diferença é que os diários da protagonista são comentados pela filha dela, escrevendo décadas depois dos acontecimentos, quando a filosofia-religião Semente da Terra, idealizada por Lauren, já se disseminou massivamente pelo planeta.

É uma filosofia laica, que reconhece e aceita os principais aspectos da realidade, sem nenhum elemento sobrenatural, tendo a constante mudança, para o mal ou bem, como o principal deles. Entretanto, as pessoas se engajam nessas ideias de forma espiritualizada, no sentido de se apoiarem nisso nos momentos difíceis, e perceberem o processo maior, além de se integrarem e até o moldarem.

Como apêndice, assim como no primeiro volume, há uma bela entrevista com a autora. Ela conta que escreveu esses dois livros como sendo um, mas terminou dividindo. Planejava escrever mais volumes, em que uma humanidade apoiada por novos valores iniciaria a migração para outros planetas, não como fuga, mas florescimento cósmico. Ela morreu antes, em 2006.

Imagino que se estivesse viva, lamentaria o modo como esse sonho de expansão estelar foi capturado e distorcido por tecno-bilionários como Musk e Bezos, a ponto de se tornar algo ridículo e lamentável.

Admito que também passei a ver isso assim.

Entretanto, no livro, a ideia de a humanidade se espalhar pelas estrelas é como um destino transcendente da filosofia Semente da Terra. Pra mim, ficou nítido que, como ela não possui nenhum elemento de ascensão majestosa, é preciso um objetivo humano que preencha a necessidade de união com algo imortal, vasto e infinito.

Entendo, apesar de não ver viagens espaciais como a melhor forma para realizar isso — na verdade, já estamos flutuando bem no meio do espaço sideral (como diz o Flaming Lips, na canção Do You Realize?), em um planeta rodeando o Sol a 30 km por segundo, em uma galáxia viajando a 600 km/segundo. A escritora nunca escondeu que o sonho de uma humanidade interestelar a atraía desde criança, assim como muitos cientistas, como o astrônomo Carl Sagan. Talvez tenha relação com o que mencionei: para pessoas que não consideram nada além da matéria observável, o espaço infinito é o que mais se parece com uma fronteira transcendental.

Um porém da edição brasileira é que a tradução não é das mais caprichadas. Para quem não costuma perceber nuances como o estilo das frases ou a sonoridade dos diálogos, não há problema nenhum. É uma tradução OK, apesar dos erros de gramática que passaram (no livro anterior, até cheguei a pensar que eram propositais, para reproduzir com fidelidade um diário). Mas senti que o estilo da escritora não estava aparecendo, que o ritmo estava desajeitado, e acabei mudando para o original em inglês, o que fez toda a diferença pra mim.

A próxima série da “Grande Dama da FC” na fila agora é O Padronista, de cinco livros.


  1. ‘A Parábola do Semeador’; entrevista com Octavia Butler‘A Parábola do Semeador’; entrevista com Octavia Butler
    A Parábola do Semeador (Parable of The Sower, 1993) talvez seja o livro mais admirado da estadunidense Octavia Butler. Além dos prêmios que recebeu há 30 anos, voltou a ser muito lido recentemente por ser, além de um ótimo romance,…