Depois de ler Absolution1 (2024), a quarta parte da série Comando Sul, de Jeff Vandermeer, fiquei com algumas interrogações, já que a última vez que havia relido os livros anteriores foi há mais de um ano.
Em um dia em que faltou energia, comecei a folhear Aniquilação para passar o tempo. Não conseguia parar e acabei relendo toda a trilogia, pela terceira vez. Essa foi a melhor experiência até agora.
Comando Sul é a única série que li mais de uma vez, e continuarei relendo. Um banquete para quem gosta de ficção especulativa e, especialmente, ecológica. Os livros são escritos, como diz o autor, para serem relidos. Pra mim, a primeira leitura deu um painel geral do que se trata. Esse conhecimento, então, ativou outra camada na segunda. Depois mais outra, e por aí vai.
Área X é uma região costeira isolada do sudeste dos EUA cuja natureza enigmaticamente torna-se completamente selvagem, intocada e livre da contaminação anterior; seu povoado desaparece e uma barreira inexplicável se ergue. Arma biológica? Fenômeno natural desconhecido? Invasão alienígena? Experiências secretas? Portal de outra dimensão?
É também a história dos erros da agência de inteligência clandestina responsável em investigar e conter o evento, o Comando Sul — um símbolo da ignorância humana em relação à natureza —, que pode ter influenciado o fenômeno. As pessoas-chave para o entendimento da anomalia são retratadas de modo brilhante: uma bióloga antisocial, duas pessoas que em momentos diferentes dirigem a agência e um ex-pastor que se refugia em um farol de praia. Suas envolventes histórias quase eclipsam o mistério principal — isso só não acontece porque se entranham completamente no enigma.
No quarto livro, Absolution — uma prequela-surpresa, lançada dez anos depois da terceira parte — personagens secundárias com papel-chave em uma “proto-Área-X”, 20 anos antes, saltam para o primeiro plano.
Além da história principal da quadrilogia ser hipnotizante, com uma formulação inédita e genial do mítico embate com uma vasta força desconhecida, a metáfora principal é a estupidez humana ao lidar com o mundo natural, através de dominação, controle, cegueira etc. Uma personagem chega a anunciar o tema, especulando que a luta entre o Comando Sul e a Área X na verdade é algo ancestral, sendo travado em um ciclo vicioso ao longo das eras, e que agora chegou num limite definitivo, em que será apocalipse ou salvação.
Por isso é uma história tão relevante hoje.
Outro tema é um tipo de misticismo natural, em que há contato íntimo com um poder inconcebível, que possui as personagens e transfigura tanto sua visão de mundo quanto seus corpos.
Inicialmente, predomina o horror cósmico à la H.P. Lovecraft, em que algo com poder praticamente infinito aterroriza a pequeneza das mentes que testemunham, jogadas na frente da monstruosidade que é aquilo que não podem nem começar a compreender. Mas com o desenrolar do mistério, já não fica tão nítido se os conceitos humanos de bem e mal se aplicam.
Por viver praticamente desvencilhada dos valores dominantes, a bióloga se conecta à Área X de modo orgânico, chegando a questionar se o que está acontecendo é a aniquilação da humanidade ou sua salvação. O modo como esses dois polos se alternam é extraordinário, algo que nunca vi igual em nenhuma história.
Um fator que faz quem lê se apaixonar é a perplexidade e a conclusão aberta. Não fica claro o que aconteceu exatamente. Isso faz com que entremos mais na pele das personagens: há uma transmissão perfeita do espanto diante de uma entidade imune à compreensão humana (tal incognoscibilidade é um tema central). Mas, ao juntar as peças, a estrutura maior começa a aparecer. Montar racionalmente esse quebra-cabeça não é obrigatório para apreciar os livros, eles podem ser intuitivamente sentidos de forma poderosa, mesmo sem uma explicação lógica.
Contudo, na seção “Spoiler” a seguir, compartilho o que entendi da narrativa e seu final, e porque considero uma história esplêndida sobre catástrofe ambiental e como lidar com ela. Em uma ficção tão rica em conexões e símbolos, ainda estou longe de captar a maior parte, mas esse resumo pode ser útil para quem leu e ainda se inquieta com os principais elementos não esclarecidos.
Spoiler: o que é a Área X
Não há dúvida de que se trata de primeiro contato alienígena, sendo a melhor história que já vi do tipo. O que não fica explícito é: Quem são? Qual é o objetivo da Área X? Como ela age? Entre outras.
No final de Aceitação, Ghost Bird2 tem uma visão da civilização alienígena por trás do artefato que criou a Área X. A espécie terminou dizimada por uma chuva de meteoros. Nisso, um “organismo artificial” — uma tecnologia — se despedaçou em minúsculos fragmentos e um deles veio parar na Terra há mais de cem anos, terminando capturado pelo labirinto refratário do enorme conjunto de lentes de um farol de navegação, já que a coisa é feita de luz. Esse é um dos símbolos mais presentes da história. Por exemplo, possuídas pela Área X, as pessoas sentem um “brilho” tomando conta delas.
Henry, da Brigada da Paranormalidade e da Ciência, é quem liberta o fragmento, uma pequena espiral luminosa que se aloja em Saul e começa a se recompor “da maneira como pode” — de modo incompleto, defeituoso — e expandir. Além disso, o objetivo do organismo está comprometido pela extinção de seus criadores, talvez milhões de anos atrás, sendo como um eco autômato falho de intenções ausentes.
Acredito que a função desse organismo de luz é escanear a biosfera de um planeta e transportar a cópia para outro, para terraformação — viabilizar a vida em um planeta morto. Fica razoavelmente claro em Aceitação que a Área X na verdade é uma espécie de cópia mimetizada e purificada daquela região na Terra, transposta em outro planeta. A fronteira não é uma fronteira, mas um portal do tipo buraco-de-verme (wormhole). Quando animais penetram a borda por fora da porta, eles vão para o passado — como mostra Absolution. Há uma distorção temporal que, pra mim, implica em distorção espacial: se há um salto no tempo, também há um salto no espaço, já que esses dois elementos são inseparáveis.
A importância da fronteira é algo bastante enfatizado. Cientistas do Comando Sul chegam a dizer que a Área X e sua fronteira são dois eventos diferentes, com funções diferentes.
Outra função que não fica clara é a do Rastejador. Mas há menção em Aceitação de que a escrita na parede da Torre cria um tipo de estrutura dimensional para o deslocamento dos leviatãs e seres duplicados, como Ghost Bird. O Rastejador seria um tipo de operador da organização espacial da Área X e suas vias de acesso, e a torre, uma central de comando.
Saul, cujo corpo e mente dão origem ao rastejador após o contato, também é uma figura-chave da dimensão espiritual que a “infestação” também representa. Quando criança, a diretora o chamava de “o guardião da luz” (do farol), e sua pregação apocalíptica dos tempos de pastor acaba sendo usada pelo organismo, entre outros elementos do tipo envolvendo transcendência, punição, êxtase e salvação.
Uma teoria bastante factível é a de que Saul foi quem criou a fronteira, para proteger outras pessoas e seres, especialmente aquelas que ama, já que ele é um guardião em muitos outros aspectos. Mas isso não encaixa muito bem com a possibilidade de a Área X estar em outro planeta.
Ainda sobre a Torre, a flor de luz no final do túnel seria como um botão de ligar e desligar o organismo geral. É tocando uma flor parecida que Saul ativa a tecnologia, e Controle a desliga atirando-se ali. Ela também aparece na planta imortal, como se fosse uma mensagem para a diretora, de que seria possível desligar a Área X.
Em Aceitação, há especulações de que a Área X não teria como objetivo prejudicar seres terrestres, de que não teria nem consciência de estar fazendo isso colateralmente. É como entendi também.
O anômalo celular recuperado de Lowry que fica repetidamente aparecendo para a diretora e Controle seria como uma tentativa da Área X se comunicar com o Comando Sul, sendo seguidamente rejeitada.
Mesmo assim, no final, a intuição da diretora se prova correta. Como ela era da região, com uma forte ligação com Saul, integrando o “terroir” — a interdependência — da Área X, inconscientemente ela sabe como abordar o fenômeno.
A bióloga tem uma ligação especial com a biosfera, assim como um desligamento social e dos piores valores dominantes — há menção até de que ela teria espancado os visitantes de um parque florestal que torturaram uma coruja. Ela é a “arma secreta” da diretora.
Por ter respirado os esporos do sermão na parede antes de ser escaneada pelo Rastejador (conforme a própria Ghost Bird percebe), a bióloga gerou uma cópia perfeita, sem perdas mentais, emocionais ou complicações físicas. Ghost Bird é uma híbrida, uma Área X humanizada, com o poder de quebrar o ciclo de agressão mútua.
Sobre os esporos que ela respira, vale um parêntese. Eles têm cheiro de “mel apodrecido”, o mesmo odor que incomoda Controle o tempo todo no Comando Sul, fora da Área X — a “contaminação” não se limita ao interior da fronteira, já está inseparável do mundo lá fora. Lembro que alguma personagem pergunta: “E se a Área X não estiver apenas lá dentro, e se ela for na verdade o mundo?”
A metáfora do mel apodrecido é interessante. Na noite da transformação de Saul, ele sente o cheiro de “mel doce” no bar da vila. Depois que a insanidade toma conta, o odor se torna podre. Talvez não por acaso, mel é conhecido por jamais apodrecer. Mel podre é algo antinatural, uma possível referência à guerra declarada contra a Área X (um símbolo do mistério da natureza) que não deveria acontecer, ela é apenas outro fenômeno desconhecido, mas natural.
Em Aceitação, também fica claro que a Área X não é o verdadeiro inimigo. Quem a ativou foi Henry, a serviço de Jack Severance, da Central. O desastre é fruto da arrogância e ignorância da dominação humana. Tal estupidez se concentra exemplarmente em Lowry, com seu trauma na Área X mal compreendido e não digerido, e o ódio que nutre pela natureza.
Em Absolution, a Área X (através do traje especial) aparentemente até chega a conversar de modo amigável com Lowry. Apesar dessa ser uma linha do tempo alternativa, também é indicado que ele é quem precisa ser eliminado.
Gostei especialmente que a neutralização do cataclismo não foi um feito heroico de uma única pessoa, apesar de Controle ter se sacrificado (após se transformar em, talvez, um coelho!). Foi fruto da dinâmica entre a diretora (e seu amor por Saul e a vila, a preocupação com Whitby…), a bióloga-ghost-bird (e sua relação com a natureza, o marido-coruja etc) e Controle (liberto pela bióloga-ghost-bird).
Um dos maiores feitos da série, pra mim, foi o modo como a diretora e Controle, inicial e superficialmente, despertam ojeriza; depois, após entendermos quem realmente são, se tornam figuras irresistíveis, cujas perdas lamentamos profundamente.
Coisa parecida acontece com a própria Área X. Passa de um desastre que desperta horror inexprimível para algo que pode ter salvo a humanidade.
A Área X termina, não há mais fronteira, mas esse final é aberto. Fica a cargo de quem lê decidir se foi um apocalipse planetário ou uma reversão do curso destrutivo da humanidade. Acho que foi um final auspicioso, devido à ascensão e iluminação do tom em Aceitação, em que finalmente pode-se enxergar quem são as protagonistas e o que de fato é a Área X — metaforicamente, inclusive.
Como a Área X não é o inimigo real, esse ainda não é o final. De modo inesquecível, ele vem em seguida, num flashback, quando a diretora está prestes a entrar no portal com a última expedição. A quinta integrante, a linguista, é a arma de Lowry, que personifica toda a estupidez arrogante e destrutiva. Ela foi intensamente condicionada com os métodos do vilão que praticamente zumbificam a pessoa em uma máquina obediente, mas ela está em pânico, não quer entrar na Área X. Sua motivação era ter perdido parentes na Área X, como a diretora.
Com empatia profunda, e decidindo que esse ciclo de dominação e sofrimento dos métodos de Lowry (e da Central) não pode mais continuar, a diretora muito gentilmente tranquiliza a linguista e a libera, dizendo que não há problema nenhum na desistência, que tudo vai ficar bem. É aí que Lowry, tudo o que ele representa e a abordagem estúpida à Área X são conclusivamente derrotados. Não com armas ou tecnologias, mas com amável consideração e compreensão. Esse despertar venceu e ela nem sabe, ou talvez saiba inconscientemente, já que muito depois morre com tanta plenitude interna. Sua intenção sobreviverá em Ghost Bird e Controle.
Atormentada por ter visto Saul preso no Rastejador, sem nunca ter esquecido a felicidade da infância na região natural, ela adentra a Área X portando uma terna mensagem de amizade e conexão profundas. Imagino que de alguma forma essa poderosa ligação, quase uma absolvição, deve ter beneficiado o que restava de Saul.
A emocionante carta também conecta a Área X com as crises do mundo e dá título ao livro conclusivo, no trecho em que diz:
O mundo de que fazemos parte agora é difícil de aceitar, inimaginavelmente difícil. Não sei se mesmo agora o aceito por completo. Não sei como. Mas a aceitação nos faz dar um passo à frente da negação, e talvez haja um desafio nisso, também.
As ilustrações são de Eric Nyquist, para os livros.
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Comando Sul 4Comando Sul 4
Absolution (2024) é o quarto volume da série Comando Sul, de Jeff Vandermeer, um livro cuja data de lançamento eu tinha até marcado no calendário. É uma prequela dos outros três livros, que misturam horror surreal com ficção científica e… ↩ -
“Ghost Bird” foi traduzido como “Ave Fantasma”. Achei desajeitado, não tem a brevidade do inglês que, originalmente, era o apelido carinhoso que o marido usava para a bióloga. Além disso, “ghost bird” é o nome em inglês de uma ave bem conhecida na América do Sul, o Urutau (que em tupi significa exatamente “ave fantasma”). ↩