O artigo abaixo é outro que encontrei em meus diretórios empoeirados (assim como A Experiência Psicodélica resumidaA Experiência Psicodélica resumida
Encontrei o texto abaixo revirando diretórios que não toco há mais de dez anos. É um artigo de Timothy Leary (1920 - 1996) que resume os pontos essenciais do clássico A Experiência Psicodélica (a imagem acima é parte da capa…). Salvei de um antigo site psicodélico para o qual contribuía há uns 15 anos (e o blog onde ele apareceu pela primeira vez ainda está online!).
Textos como esse são relíquias da 1ª explosão lisérgica, nos anos 60. Já dentro da atual renascença psicodélica, vale a pena revisitá-las. O professor Alan Watts tinha uma das vozes mais eloquentes sobre o assunto. O próprio Timothy Leary costumava recomendar os relatos de experiências de Watts.
Lembro que há uns 15 anos, começou um tipo de revival de Alan Watts via gravações de áudio no Youtube. Ele tinha virado uma espécie de guru póstumo daquela ideia (embaraçosamente antropocêntrica) de que "o universo desperta na consciência humana".
Um outro ressurgimento de Watts, bem interessante, na cultura popular foi no filme "Ela" (2013). No final, quando a IA protagonista começa a "transcender", ela faz isso sob a influência de uma versão IA de Alan Watts.
Pessoalmente, sinto-me muito grato a Alan por um livro em particular: The Book: On the Taboo Against Knowing Who You Are. Chamar isso de "O Livro" se justifica. Na introdução ele conta que — reza uma lenda — muito antigamente havia um livro secreto (pois o assunto era um tabu) sobre tudo que alguém deveria saber sobre a vida marital, uma coletânea de instruções orais passadas de geração para geração no momento adequado. Hoje também há um tipo de tabu psico-sociopolítico que nos impede de saber quem realmente somos e o que é a realidade. Então precisamos de um livro sobre isso também, imagina Watts. Posso dizer que a obra realmente cumpre essa tarefa.
Voltando ao artigo abaixo, apesar de ainda conservar muitos insights valiosos, a mensagem política envelheceu um pouco, considerando o atual capitalismo psicodélico que se prenuncia inevitável. No norte global, que está legalizando algumas dessas substâncias, startups psicodélicas estão atraindo milhões em investimentos.
O Vale do Silício mesmo tem a revolução psicodélica em sua gênese (vale ler What The Dormouse Said) e nos últimos anos os lucros têm sido turbinados pelos insights da microdosagem de "tech bros" — sem falar no Burning Man.
Ou seja, a atual renascença psicodélica já nasce com a "marca da besta".
Psicodélicos e a experiência religiosa
por Alan Watts (1915 ~ 1973)
Publicado no California Law Review, Vol. 56, No. 1, Janeiro de 1968, p. 74-85.
As experiências resultantes do uso de drogas psicodélicas são frequentemente descritas em termos religiosos. Por causa disso elas são de interesse daqueles como eu que, na tradição de William James, estão preocupados com a psicologia da religião. Por mais de trinta anos estive estudando as causas, as conseqüências e as condições dos estados peculiares de consciência nos quais o indivíduo descobre que ele mesmo é um processo contínuo com Deus, com o Universo, com a Base do Ser, ou qualquer outro nome que ele possa usar dentro da condição cultural ou preferência pessoal para a última e eterna realidade.
Nós não temos nomes satisfatórios e definitivos para experiências desse tipo. Os termos “experiência religiosa”, “experiência mística” e “consciência cósmica” são todos vagos e abrangentes demais para indicar alguma forma de consciência específica que, para aqueles que conheceram isso, é tão real e esmagador como se apaixonar.
O artigo descreve tais estados de consciência induzidos por psicodélicos, mesmo sabendo que eles são virtualmente indiferenciáveis de experiências místicas. O artigo então discute questionamentos ao uso de psicodélicos que surgiram principalmente da oposição entre valores místicos e as religiões tradicionais mais os valores laicos da sociedade ocidental.
A experiência psicodélica
A ideia de experiências místicas resultantes do uso de drogas não é prontamente aceitável nas sociedades ocidentais. A cultura ocidental tem historicamente um fascínio particular com o valor e virtude que o homem tem como indivíduo, autodeterminado, com um ego responsável, controlando ele próprio e seu mundo pela força do esforço consciente e vontade. Nada então poderia ser mais repugnante a essa tradição cultural do que a noção de crescimento espiritual e psicológico através do uso de drogas.
Um “drogado” é por definição esmaecido em consciência, com seu julgamento em névoas e privado de vontade. Mas nem todos psicotrópicos (alteradores de consciência) são narcotizantes e soníferos, como o álcool, opiáceos e barbitúricos. Os efeitos do que agora chamamos psicodélicos (manifestadores da mente) diferem das substâncias similares ao álcool assim como a risada difere da raiva; o regojizo, da depressão. Não há absolutamente comparação entre “viajar” sob efeito do LSD ou ficar “bêbado” de bourbon.
De fato ninguém em quaisquer desses estados deveria dirigir um carro, mas também não deveria dirigir enquanto lê um livro, toca violino ou faz amor. Certas atividades criativas da mente demandam concentração e devoção que são simplesmente incompatíveis com operar uma máquina letal numa estrada.
Eu mesmo já experimentei cinco dos principais psicodélicos: LSD-25, mescalina, psilocibina, dimetiltriptamina (DMT) e cannabis. Fiz isso — assim como William James experimentou óxido nitroso — pra ver se eles poderiam me ajudar a identificar o que pode ser chamado de ingrediente “essencial” ou “ativo” da experiência mística. Quase toda literatura clássica sobre misticismo é vaga, não só em descrever a experiência, mas também em mostrar uma ligação racional entre a própria experiência e os vários métodos tradicionais recomendados pra induzir isso: jejum, concentração, exercícios de respiração, orações, encantamentos e danças.
Mestres tradicionais do Zen ou yoga, quando questionados por que tal e tal prática leva ou predispõe alguém à experiência mística, sempre respondem: “Essa é a forma que meu mestre passou pra mim. Foi assim que a encontrei. Se você está seriamente interessado, tente você mesmo".
Essa resposta dificilmente satisfaz um ocidental impertinente, de mente científica e intelectualmente curioso. Isso o lembra de receitas médicas arcaicas que juntam cinco salamandras, pó de corda de forca, três morcegos cozidos, uma pitada de fósforo, três punhados de escopolamina e um monte de esterco de dragão feito quando a lua estava em peixes. Talvez funcionasse, mas qual era o ingrediente essencial?
Veio-me então a ideia de que se uma substância psicodélica pudesse induzir minha consciência de fato a uma experiência mística, eu poderia usá-la como instrumento para estudar e descrever a experiência, do mesmo modo que alguém usa um microscópio na bacteriologia, mesmo que o microscópio seja uma invenção “artificial” e “não-natural” que, segundo dizem, “distorce” a visão a olho nu.
De qualquer forma, quando fui primeiramente convidado a testar as qualidades místicas do LSD-25 pelo dr. Keith Ditman da Clínica de Neuropsiquiatria da Faculdade de Medicina da UCLA, eu estava pouco disposto a acreditar que uma simples substância química pudesse induzir uma experiência mística genuína. No máximo, isso poderia levar a um estado de insight espiritual, semelhante a nadar com asas de água. De fato, minha primeira experiência com LSD-25 não foi mística. Foi uma experiência estética e intelectual, intensa e interessante, que desafiou ao máximo minha força de análise e descrição minuciosa.
Alguns meses depois, em 1959, tentei LSD-25 de novo com os doutores Sterling Brunnell e Michael Agraon, que eram associados à Clínica Langley-Porter em São Francisco. No curso de dois experimentos eu estava maravilhado e de alguma forma embaraçado ao me ver passando por estados que correspondiam precisamente a todas as descrições de grandes experiências espirituais sobre as quais já tinha lido.
Além disso, elas ultrapassaram — tanto em profundidade quanto em uma qualidade peculiar de imprevisibilidade — as três experiências “naturais e espontâneas” desse tipo que tive nos anos anteriores.
Após mais experimentação com LSD-25 e outras substâncias citadas acima (com exceção de DMT, que achei divertido, mas relativamente desinteressante), descobri que podia me mover com facilidade em direção ao estado de “consciência cósmica”, e com o tempo me tornei cada vez menos dependente das substâncias em si para me "sintonizar" com esse comprimento de onda em particular.
Dos cinco psicodélicos que usei, descobri que LSD-25 e cannabis se ajustavam melhor aos meus propósitos. Desses dois, o último — cannabis, que tive de usar no exterior em países onde não é ilegal — provou ser o melhor. Ela não induz alterações bizarras de percepção sensorial e estudos médicos indicam que não deve ter, salvo em quantidades excessivas, os efeitos colaterais perigosos do LSD.
Para os propósitos desse estudo, ao descrever minhas experiências com drogas psicodélicas evito as ocasionais alterações bizarras na percepção dos sentidos que as substâncias psicodélicas podem induzir. Estou interessado, antes, nas alterações fundamentais da consciência normal, socialmente induzida, de cada um e a relação com o mundo externo. Estou tentando delinear os princípios básicos da consciência psicodélica. Mas devo mencionar que posso falar apenas sobre mim. A qualidade dessas experiências depende consideravelmente da atitude de cada um com a vida, apesar de as descrições na literatura, agora volumosa, sobre essas experiências concordarem de maneira notável com as minhas.
Quase invariavelmente, minhas experiências com psicodélicos tiveram quatro características dominantes. Devo tentar explicá-las, na expectativa que o leitor dirá, pelo menos sobre a segunda e a terceira: “O que?! Isso é óbvio! Ninguém precisa de uma droga pra ver isso”. É verdade, mas cada insight tem níveis de intensidade. Pode haver o óbvio-1 e o óbvio-2 — e o último vem numa claridade destruidora, manifestando suas implicações em cada esfera e dimensão de nossa existência.
A primeira característica é um ritmo mais lento do tempo, uma concentração no presente. A preocupação compulsiva normal da pessoa com o futuro diminui e ela se torna ciente da importância enorme e do interesse que desperta o que está acontecendo no momento. Outras pessoas, levando consigo suas preocupações na rua parecem ligeiramente loucas, falhando em compreender que a questão toda da vida é estar completamente consciente dela à medida que acontece. Então a pessoa relaxa, quase com luxúria, no estudo das cores do copo d’água ou na audição do que é agora a vibração altamente articulada de cada nota tocada num oboé ou cantada por uma voz.
Do ponto de vista pragmático da nossa cultura, tal atitude é muito ruim para os negócios. Pode levar à imprudência, falta de visão no futuro, venda menor de apólices de seguro e o abandono de contas de poupança. Mas essa é justamente a correção que nossa cultura necessita. Ninguém é tão tolamente inábil quanto o “bem sucedido” executivo que gasta toda sua vida absorto em um trabalho frenético com relatórios com o objetivo de se aposentar confortavelmente aos sessenta e cinco, quando já será tarde demais para tudo.
Só aqueles que cultivaram a arte de viver completamente no presente extraem alguma utilidade dos planos para o futuro, pois quando os planos se concretizarem eles estarão aptos a desfrutar dos resultados. ”O amanhã nunca chega”. Nunca ouvi um pregador incitando sua congregação a praticar a parte do Sermão da Montanha que diz: “não fique ansioso pelo amanhã…”. A verdade é que as pessoas que vivem para o futuro, como dizemos dos loucos, “não estão muito lá"; e nem aqui. Devido à ansiedade em excesso eles estão perpetuamente errando o ponto. A visão no futuro é comprada pagando-se com ansiedade, e quando é usada demais destrói todas suas vantagens.
Polaridade
A segunda característica eu chamarei de consciência da polaridade. É o vívido entendimento que estados, coisas e eventos que ordinariamente são chamados de opostos são interdependentes, como frente e atrás, ou os pólos magnéticos. Pela consciência da polaridade se vê que as coisas explicitamente diferentes são implicitamente uma só: eu próprio e o outro, sujeito e objeto, direita e esquerda, masculino e feminino; e então, de modo um pouco mais surpreendente, solidez e o espaço, figura e paisagem de fundo, pulso e intervalo, santos e pecadores, policiais e criminosos, pessoas de dentro do grupo e de fora do grupo. Cada um é definido em relação ao outro e eles vão juntos no processo, como comprar e vender, porque não há venda sem compra. Assim que essa consciência se torna mais intensa, você sente que é polarizado com o universo externo de tal forma que um implica no outro. Se você empurra, esse é o movimento inverso dele, e o empurrão do universo é você puxando — do mesmo modo que você move o volante de um carro. Você está empurrando ou puxando?
No início, essa é uma sensação bem estranha, não muito diferente de ouvir sua própria voz sendo tocada num sistema eletrônico imediatamente depois que você falou. Você fica confuso e espera isso para poder continuar. Similarmente, você sente que é algo que está sendo feito pelo universo, ainda que o universo seja algo sendo feito por você — o que é verdade, pelo menos no sentido neurológico de que a estrutura peculiar de nosso cérebro traduz o sol em luz e a vibração do ar em som.
Nossa sensação normal na relação com o mundo externo é que às vezes eu empurro isso, e algumas vezes isso me empurra. Mas se os dois são de fato um, onde a ação inicia e fica a responsabilidade? Se o universo está me fazendo, como posso ter certeza de que, daqui a dois segundos, ainda lembrarei da língua inglesa? Se eu estou fazendo-o, como posso ter certeza que, daqui a dois segundos, meu cérebro saberá como transformar o sol em luz? De sensações não familiares como essas, a experiência psicodélica pode gerar confusão, paranoia e terror mesmo que o indivíduo sinta sua relação com o mundo exatamente do modo como seria descrita por um biólogo, ecologista ou físico, porque ele está sentindo a si mesmo como um campo unificado de organismo e ambiente.
A terceira característica, que surge com a segunda, é a consciência da relatividade. Vejo que sou uma ligação numa hierarquia infinita de processos e seres, variando de moléculas a bactérias e insetos até os seres humanos e, talvez, em direção a anjos e deuses — uma hierarquia em que cada nível na verdade contém a mesma situação. Por exemplo, o pobre se preocupa com dinheiro enquanto o rico se preocupa com sua saúde; a preocupação é a mesma, a diferença está na substância ou dimensão.
Percebo que moscas de frutas devem pensar nelas mesmas como as pessoas fazem, porque, como nós, elas se encontram no meio do seu próprio mundo, com coisas imensuravelmente maiores acima e coisas menores abaixo. Para nós, elas são todas parecidas e parecem não ter personalidade — como os chineses quando não vivemos com eles. Ainda assim, as moscas devem ver diversas distinções sutis entre si, do mesmo modo como fazemos.
Nesse ponto, basta um passo curto para a compreensão de que todas as formas de vida são simples variações de um único tema: nós somos de fato um mesmo ser fazendo a mesma coisa das mais diferentes formas possíveis. Como o provérbio francês diz: "plus ca change, plus c’est la meme chose" (quanto mais varia, mais é único).
Vejo ainda que se sentir ameaçado pela inevitabilidade da morte é realmente a mesma experiência que se sentir vivo, e que como todos os seres estão sentindo isso em todo lugar, eles são tão “eu” quanto eu mesmo. Ainda que o sentimento de “eu”, para ser sentido realmente, precise sempre ser uma sensação em relação ao “outro”, algo além do seu controle e experiência. Para existir de fato, algo deve começar e terminar.
Mas o salto intelectual que as experiências místicas e psicodélicas provocam aqui é permitir que você veja toda essa miríade de “eus centrais” como você mesmo — na verdade não o seu ego pessoal e superficialmente consciente, mas o que os hindus chamam de "paramatman", a Identidade de todas as identidades. Como a retina nos permite ver incontáveis pulsos de energia como uma única luz, da mesma forma a experiência mística nos mostra inumeráveis indivíduos como uma única Identidade.
A quarta característica é a consciência da energia eterna, geralmente em forma de uma intensa luz branca, que parece ser tanto a corrente elétrica em seus nervos quanto o misterioso E que equaciona mc². Isso pode soar como megalomania ou ilusão de grandeza — mas a pessoa vê bem claramente que toda a existência é uma única energia, e que essa energia é o nosso próprio ser.
Claro que existe morte tanto quanto vida, porque a energia é uma pulsação, e assim como as ondas devem ter crista e base, a experiência de existir deve seguir e parar. Basicamente, portanto, não há nada o que lamentar, porque você é a energia eterna do universo brincando de esconde-esconde (ligando e desligando) com ela mesma. Na raiz, você é a Divindade, já que Deus é tudo que existe. Citando Isaías, apenas ligeiramente fora do contexto:
Eu sou o Senhor e não há nada mais. Eu formo a luz e crio a escuridão. Eu faço a paz e crio o mal. Eu, o Senhor, faço todas essas coisas.
Esse é o sentido do princípio fundamental do hinduísmo, "tat tvam asi", “tu és Aquilo” (Aquilo, ou seja, o Ser sutil do qual todo esse universo é composto). Um caso clássico dessa experiência, no Ocidente, está nas memórias de Tennyson:
… Um tipo de caminhar em transe que eu tenho tido freqüentemente, desde quando era garoto, quando ficava sozinho. Isso geralmente ocorre quando repito meu nome duas ou três vezes a mim mesmo em silêncio, até que, tudo de uma vez só, como se isso surgisse da intensidade da consciência na individualidade, a própria individualidade parece se dissolver e apagar num ser sem limites; e esse não é um estado confuso, mas a maior clareza entre as clarezas, a certeza das certezas, a estranheza das estranhezas, profundamente além de palavras, onde a morte era risivelmente impossível; a perda de personalidade (se fosse isso) parecendo não uma extinção, mas a única e verdadeira vida. [Alfred Lord Tennyson, A Memoir by His Son (1898), 320.]
Obviamente, essas características da experiência psicodélica, como tenho visto, são aspectos de um único estado de consciência — porque estive descrevendo a mesma coisa a partir de ângulos diferentes. As descrições tentam transmitir a realidade da experiência, mas ao fazer isso também sugerem algumas das inconsistências entre tais experiências e os valores atuais da sociedade.
Oposição às drogas psicodélicas
A resistência para a liberação do uso de drogas psicodélicas origina-se em valores tanto religiosos quanto laicos. A dificuldade em descrever experiências psicodélicas nos termos religiosos tradicionais sugere uma das bases da oposição. O ocidental precisa pegar emprestado palavras como "samadhi" ou "moksha" dos hindus, ou "satori" e "kensho" dos japoneses, para descrever a experiência de unidade com o universo.
Não temos uma palavra apropriada pois nossas teologias judaica e cristã não vão aceitar a ideia de que a identidade mais central do homem pode ser idêntica à Divindade, mesmo apesar de os cristãos insistirem que isso foi verdadeiro unicamente no exemplo de Jesus Cristo.
Judeus e cristãos pensam em Deus em termos políticos e monárquicos, como o governante supremo do universo, o mais alto chefe. Obviamente, é tanto socialmente inaceitável quanto logicamente absurdo que seja devidamente reconhecido e honrado o argumento de um indivíduo específico afirmando ser ele próprio o onipotente e onisciente governante do universo.
Tal conceito imperial e monárquico sobre a realidade última, de qualquer forma, não é nem necessário nem universal. Hindus e chineses não têm dificuldade em conceber uma identidade junto com a Divindade. Para a maioria dos asiáticos, exceto muçulmanos, a Divindade move e manifesta o mundo de forma muito parecida com a centopeia manipulando centenas de pernas espontaneamente, sem deliberação ou cálculo.
Em outras palavras, eles concebem o universo com uma analogia de organismo em vez de um mecanismo. Eles não vêem a coisa como um artefato ou construção sob a direção consciente de algum supremo técnico, engenheiro ou arquiteto.
Se, contudo, no contexto da tradição cristã ou judaica, um indivíduo declara ele próprio ser um com Deus, deve ser classificado como blasfemo (subversivo) ou insano. Tal experiência mística é uma ameaça clara aos conceitos religiosos tradicionais. A tradição judaico-cristã tem uma ideia monárquica de Deus, e monarcas, que governam pela força, o que mais temem é a insubordinação.
A Igreja então sempre viu com muita suspeita os místicos, porque eles se mostram insubordinados e clamam igualdade, ou pior, a mesma identidade de Deus. Por essa razão, John Scotus Erigena e Meister Eckhart foram condenados como hereges. Foi por isso também que os Quacres (n.t.: ou Quakers, linha protestante de orientação mais "mística") encontraram oposição à sua doutrina da Luz Interior, e por sua recusa em remover chapéus em igrejas e cortes.
Alguns místicos ocasionais eram aceitos, desde que tomassem cuidado com seu linguajar, como Santa Teresa d’Ávila e São João da Cruz, que mantiveram uma, digamos, distância metafísica respeitosa entre eles e seu Rei celeste. Nada, contudo, poderia ser mais alarmante à hierarquia eclesiástica do que um surto popular de misticismo, porque isso seria o equivalente ao estabelecimento de uma democracia no reino dos céus — tal alarme seria compartilhado igualmente por católicos, judeus e protestantes fundamentalistas.
A imagem monárquica de Deus, com seu implícito desgosto pela insubordinação religiosa, tem um impacto mais penetrante do que muitos cristãos podem admitir. O trono dos reis tem paredes logo atrás dele e todos que se apresentam à corte devem se prostrar ou ajoelhar-se, porque essa é uma posição ruim para lançar um ataque súbito. Talvez nunca tenha ocorrido aos cristãos que quando eles desenham uma igreja nos moldes de uma corte real (basílica) e prescrevem o ritual dentro da igreja, isso implica que Deus, assim como um monarca humano, está com medo. Isso também está implícito na adulação das orações:
Ó Deus, nosso pai celestial, alto e poderoso, Rei dos reis, Senhor dos senhores, o único Governante de príncipes, aquele que de seu trono guarda todos moradores na terra: de coração nós o suplicamos pelo seu favor…
O ocidental que clama consciência de unidade com Deus ou com o universo dessa forma confronta a concepção religiosa de sua sociedade. Na maior parte das culturas asiáticas, porém, tal homem será felicitado por penetrar o verdadeiro significado da vida.
Ele chegou — por acaso ou alguma disciplina como yoga ou meditação zen — a um estado de consciência em que ele experimenta direta e vividamente o que nossos próprios cientistas sabem ser verdade na teoria.
O ecologista, o biólogo e o físico sabem (mas raramente sentem) que qualquer organismo compõe um mesmo campo de ação, ou processo, com seu ambiente. Não há como separar o que o ambiente está fazendo, por essa razão ecologistas não falam em organismos dentro de ambientes, mas sim de organismos-ambientes. Assim as palavras “eu” e “ego” deveriam mais apropriadamente significar aquilo que todo o universo está fazendo neste exato “aqui-e-agora” chamado Fulano de Tal.
Ciência e sociedade
O conceito monárquico de Deus torna a identidade conjunta de ego e Deus, ou ego e Universo, inconcebível em termos religiosos ocidentais. A diferença entre conceitos orientais e ocidentais do homem e seu universo, em todo caso, se estende além dos conceitos estritamente religiosos. O cientista ocidental pode perceber racionalmente a ideia de organismo-ambiente, mas ele normalmente não sente que isso seja verdade.
Por condicionamento cultural e social, ele foi hipnotizado para vivenciar a si como um ego: um centro isolado de consciência e vontade dentro de um saco de pele, confrontando um mundo externo que lhe é estranho. Dizemos: “Vim ao mundo”. Mas não fizemos nada disso. Nós saímos dele, assim como uma fruta sai das árvores. Nossa galáxia, nosso cosmos, “povoa” da mesma forma que as macieiras “geram maçãs”.
Tal visão do universo confronta a ideia monárquica de Deus, o conceito de ego separado e mesmo a mentalidade secular, ateísta/agnóstica, que deriva do senso comum da mitologia científica do século XIX. De acordo com essa visão, o universo é um mecanismo sem mente e o homem, um tipo de micro-organismo acidental que infesta um diminuto globo de pedra que gira em torno de uma estrela sem importância na beirada externa de uma das galáxias menores.
Essa teoria "redutora” do homem é extremamente comum entre os (quase) cientistas como sociólogos, psicólogos e psiquiatras, que pensam no mundo mais em termos da mecânica newtoniana, e nunca realmente captaram as idéias de Einstein e Bohr, Oppenheimer e Schrodinger.
Assim, para o psiquiatra institucional padrão, um paciente que dá qualquer sugestão de experiência mística ou religiosa é automaticamente classificado como demente. Do ponto de vista da religião mecanicista, ele é um herege, que recebe terapia de eletrochoque como uma forma moderna de se apertar os parafusos. E, incidentalmente, é justamente esse tipo de pseudo-cientista que, como consultor do governo e das agências legisladoras, ditam as políticas oficiais sobre o uso de substâncias psicodélicas.
Inabilidade em aceitar a experiência mística é mais do que uma desvantagem intelectual. Falta de consciência da unidade básica entre organismo e ambiente é uma séria e perigosa alucinação. Para uma civilização equipada com imenso poder tecnológico, a ideia de separação entre homem e natureza provoca um uso da tecnologia com espírito hostil: uma “conquista” da natureza ao invés da cooperação inteligente com ela.
O resultado é que nós estamos erodindo e destruindo nosso ambiente, espalhando uma “los-angelização” ao invés de civilização.
Essa é a maior ameaça pairando sobre a cultura tecnológica ocidental, e nenhuma argumentação racional ou pregação sobre o fim dos tempos parece ajudar. Simplesmente não reagimos às técnicas moralizantes e proféticas de conversão que judeus e cristãos sempre usaram.
Mas as pessoas fazem uma ideia vaga sobre o que é bom para elas — chame isso de “auto-cura inconsciente”, “instinto de sobrevivência”, “crescimento potencial positivo”, o que for. Entre jovens educados há assim um interesse surpreendente e inédito na transformação da consciência humana. Por todo mundo ocidental editoras estão vendendo milhões de livros sobre yoga, vedanta, zen budismo e a química mística das drogas psicodélicas.
Passei a acreditar que toda essa subcultura hippie, por mais que algumas de suas manifestações estejam mal direcionadas, é a tentativa mais séria e responsável dos jovens pra corrigir o curso auto-destrutivo da civilização industrial.
Sociedade americana
O conteúdo da experiência mística, então, é incompatível tanto com os conceitos seculares quanto com as tradições religiosas do pensamento ocidental. Além disso, experiências místicas costumam resultar em atitudes que ameaçam a autoridade, não só de igrejas estabelecidas, mas também da sociedade laica. Sem medo da morte e ausente de ambições mundanas, aqueles que se submeteram às experiências místicas são imunes a ameaças e promessas. Mais ainda, sua ideia da relatividade do bem e do mal desperta a suspeita de que falta a eles tanto consciência quanto respeito pelas leis. O uso de psicodélicos nos Estados Unidos por uma burguesia letrada significa que um segmento importante da população está indiferente às sanções e recompensas tradicionais da sociedade.
Em teoria, a existência dentro da nossa sociedade laica de um grupo que não aceita os valores convencionais é consistente com nossa visão política. Mas um dos grandes problemas dos Estados Unidos, legalmente e politicamente, é que nunca tivemos realmente a coragem de manter nossas convicções.
A República é fundada no maravilhoso e são princípio de que a comunidade humana só pode existir e prosperar com base na confiança mútua. Metafisicamente, a Revolução Americana foi uma rejeição ao dogma do pecado original, que é a noção de que, você não pode confiar em você ou outras pessoas: deve haver uma autoridade superior para nos manter em ordem. O dogma foi rejeitado porque, se for verdade que não podemos confiar em nós mesmos e nos outros, também não podemos confiar numa autoridade superior que nós mesmos concebemos e obedecemos, e que a própria ideia de nossa inconfiabilidade é inconfiável!
Cidadãos dos Estados Unidos acreditam, ou deveriam supostamente acreditar, que a república é a melhor forma de governo. Uma confusão ainda maior surge ao tentar ser republicano na política e monarquista na religião. Como pode uma república ser a melhor forma de governo se o universo, o céu e o inferno são uma monarquia? Ademais, apesar da teoria do governo por consenso — baseado na confiança mútua — as pessoas nos Estados Unidos mantém, devido à herança autoritária de suas religiões e às origens nacionais, uma fé completamente ingênua na lei como um tipo de poder paternalista sobrenatural. “Deveria ter uma lei contra isso!”
Nossos oficiais que aplicam as leis então estão confusos, em dificuldades, aturdidos, para não dizer corruptos — por serem requisitados para cumprir leis sagradas, geralmente de origem eclesiástica, que um vasto número de pessoas não planeja obedecer e que, de qualquer forma, são imensamente difíceis ou simplesmente impossíveis de aplicar — por exemplo, barrar algo tão indetectável como LSD-25 do comércio internacional e interestadual.
Perigosa fuga da realidade
Por fim, há duas objeções específicas ao uso de drogas psicodélicas. Primeiro, o uso dessas drogas pode ser perigoso. De qualquer maneira, qualquer exploração que vale a pena é perigosa: a escalada de uma montanha, testar aeronaves, mísseis no espaço, mergulho sem equipamento ou capturar espécies botânicas nas selvas. Mas se você valoriza o conhecimento e o próprio deleite de uma exploração mais do que a mera duração de uma vida entediante, você está disposto à correr riscos.
Não é realmente saudável para monges praticar o jejum, e dificilmente foi higiênico para Jesus ser crucificado, mas esses são riscos assumidos no curso de esforços espirituais. Hoje a juventude aventureira está assumindo riscos ao explorar a psique, testando seu fervor numa tarefa assim como antigamente testaram – de forma mais violenta – ao caçar, duelar, competir em carros velozes e jogar futebol. Eles não precisam de proibições e policiais, mas dos mais inteligentes conselhos e encorajamento que possam encontrar.
Em segundo lugar, a droga pode ser criticada como uma fuga da realidade. De qualquer forma, essa crítica assume injustamente que experiências místicas por si só são escapistas e irreais. LSD, em particular, em hipótese alguma é uma leve e confortável fuga da realidade. Ele facilmente pode ser uma experiência em que você terá de testar sua alma contra todos demônios no inferno.
Para mim, foi às vezes uma experiência em que estava completamente perdido nos corredores da mente, e ainda assim relacionando isso com a exata ordem lógica da língua, simultaneamente muito louco e muito são. Mas além desses episódios de estar perdido e louco, há a experiência do mundo como um sistema de total harmonia e glória, e a disciplina de ligar isso à ordem lógica da linguagem deve de alguma forma explicar como aquilo que William Blake chamou de a “energia que é deleite eterno” pode consistir na miséria e sofrimento do dia-a-dia.
A indubitável intenção mística e religiosa da maior parte de usuários de psicodélicos, mesmo se algumas dessas substâncias se provarem nocivas à saúde física, requer que seu uso livre responsável seja isento de restrições legais de qualquer república que mantém uma separação constitucional entre igreja e estado.
Na medida que a experiência mística se adaptar a um envolvimento com tradições religiosas genuínas, e na medida que psicodélicos induzirem essa experiência, usuários devem receber alguma proteção constitucional.
E também na medida que pesquisas na psicologia da religião possam utilizar tais drogas, estudantes da mente humana devem ser livres para usá-las. Sob a lei presente, eu, como estudante experiente da psicologia da religião, não posso mais pesquisar na área.
Essa é uma bárbara restrição da liberdade espiritual e intelectual, sugerindo que o sistema legal dos Estados Unidos está, acima de tudo, em aliança implícita com a teoria monárquica do universo, e irá além do mais, proibir e perseguir idéias e práticas religiosas baseadas numa visão orgânica e unitária do universo.