Terminei uma leitura incompleta de Notas Sobre o Anarquismo (2010), que reúne artigos e entrevistas de Noam Chomsky sobre esse tema. Não li tudo pois alguns ensaios (como o primeiro e mais longo), para mim, são excessivamente minuciosos com história e detalhes biográficos. Mas os textos menores e entrevistas para o público em geral são ótimos, apresentando a peculiar visão anarquista desse que é um dos maiores intelectuais vivos.
Esse linguista e ativista dispensa apresentações. Ele é quase como uma entidade sobre-humana — ou mesmo um meme — de esquerda, representando conhecimento e rigor intelectual. Dá para ter uma ideia de sua gigantesca influência com algumas anedotas. Por exemplo, o vocalista do Strokes certa vez o entrevistou para a Rolling Stone, em um quadro surreal, como se Chomsky fosse um oráculo futurista onisciente. Há também a aposta que o lendário hacker Aaron Swartz manteve quando vivo: ele pagaria US$ 50 para quem lhe demonstrasse que uma afirmação de Chomsky é falsa. Ele tem tantos livros publicados (mais de 100) porque basta seu nome aparecer na capa para vender bem.
Como Chomsky frequentemente se manifesta pela responsabilização legal de atrocidades imperialistas e defende medidas governamentais contra corporações, muitas pessoas desconhecem que ele na verdade é anarquista, essencialmente contra qualquer tipo de autoridade ou poder. Seria isso uma contradição?
Esse é um dos motivos porque anarquistas mais hardcore não consideram autores como Chomsky, ou o seminal David Graeber, como sendo realmente anarquistas.
Mas eu partilho desse "anarquismo moderado". O desmantelamento total das estruturas de poder e opressão é o objetivo final ou utópico (no sentido positivo). Até lá, os governos têm uma responsabilidade importante no sentido de proteger as sociedades, e seu ambiente, da predação vale-tudo do hiper capitalismo.
O principal mal entendido sobre o anarquismo é a frequente associação com o caos — e isso costuma ser difundido até pela esquerda mais revolucionária (o que não surpreende, levando em consideração a histórica desavença entre socialistas e anarquistas). Um artigo da revista socialista Jacobin, sobre o elogio ao comunismo no consagrado seriado The Last of Us, ilustra bem isso.
Segundo o artigo, o movimento dos Vagalumes (Fireflies) contra a ditadura apocalíptica que se instaura sofreria desse caos anarquista; já a comunidade onde vive o irmão de Joel é o exemplo da utopia comunista.
Para mim, os Vagalumes se parecem muito mais com militares socialistas do que com anarquistas. E a comuna, que é a única sociedade atraente daquele mundo, não difere em nada do ideal anarquista. Anarquistas e socialistas discordam essencialmente sobre os meios para chegar à sociedade ideal: socialistas defendem governo e autoridade, anarquistas acreditam que esse meio contamina o fim, criando mais opressão (o que a história costuma demonstrar).
Então qual é a receita anarquista para construir a sociedade ideal? Na verdade, não há consenso sobre isso. Cada ramo (como anarco-sindicalismo, anarco-primitivismo etc) tem sua posição. Mas há um elemento em comum em todas variações: a de que temos uma capacidade natural para nos organizar e viver, para a ajuda mútua, sem precisar de nenhuma autoridade para isso; e eventualmente chegaremos a uma sociedade harmônica natural, se obtermos a liberdade para transformar e experimentar.
Não me considero socialista de modo nenhum. No entanto, como Chomsky, acredito que governos social-democratas são nossa melhor chance rumo ao ideal anarquista, no sentido de podermos caminhar nessa direção com menos opressão.
Chomsky é um admirador do grande filósofo Bertrand Russell. No futuro, é bem capaz que ele seja lembrado como tendo a mesma estatura intelectual e moral. Como ele diz em um dos textos:
Aquelas pessoas que adotam o princípio de bom senso de que a liberdade é nosso direito natural e uma necessidade essencial vão concordar com Bertrand Russell de que o anarquismo é "o ideal último para onde a sociedade deve se aproximar".
PS: Li a versão em inglês, Chomsky On Anarchism. Parece que essa versão em português que linkei não é exatamente a mesma.