Mito da dificuldade de se libertar de big techs

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Resumo: há um mito de que abandonar serviços big tech, parcial ou totalmente, seria extremamente difícil. É mais fácil do que eu mesmo imaginava. Se tiver familiaridade técnica, experimente e verá. Se não tiver, é possível diminuir a dependência com serviços alternativos. A chave é reconhecer: big tech é uma prisão. Sem isso, o próprio debate sobre "libertação" (que é o assunto central) perde o sentido.


Como é viver (quase) livre da influência das big techs? — deixo um "(quase)" porque indiretamente sempre vem algo. Há uns bons meses expurguei isso de minha vida, praticamente:

  • Exorcisar Big TechExorcisar Big Tech
    Já faz algum tempo que me sinto meio doente ao usar produtos big tech. É nauseante a forma como o ódio e a desinformação são lucrativos nesse modelo de negócios: discussões ofensivas, discursos negacionistas e até supremacistas são coisas que…
  • Celular livre de big techsCelular livre de big techs
    Como já mencionei, instalei LineageOS, uma versão sem Google do Android, no celular. (Privacidade no celular e o conluio big tech, há aí um detalhe importante para quem for instalar. E vale sublinhar que há uma lista restrita de aparelhos…

Depois da fase de migração, é algo que nem exige muita manutenção. É como no VPS onde mantenho servidor de email, sites etc: após ajeitar (e blindar) tudo, ele fica lá, meses e meses sem reiniciar. Raramente exige manutenção.

Tem gente que acha que isso envolve ficar o tempo todo afinando ou estudando softwares nebulosos. Mas não, fiz a migração baseada em tarefas. Exemplo: "Preciso achar uma alternativa ao calendário." Daí é procurar, implementar, às vezes depurar e pronto. "A próxima tarefa é Y. No dia tal, vai dar tempo pra ver." E vai indo, sem pressa.

Até que chega o dia em que não há mais o menor sinal dessas corporações no fluxo de atividades. Não tem como negar, a sensação é ótima, indescritível.

Obviamente migrar envolve familiaridade intensa com software. Pra quem tiver, é tranquilo. E, quem quiser ter, basta praticar — nunca foi tão fácil, a internet pode sim ser maravilhosa. Será uma habilidade valiosa, quase de sobrevivência, para a distopia "corpotech" que vai se tornando cada vez mais nítida.

Como diz Spinoza (no final de Ética1):

… o que é encontrado tão raramente deve ser difícil. Pois se a salvação estivesse à mão e pudesse ser encontrada sem grande esforço, como quase todo mundo poderia negligenciá-la? Mas todas as coisas excelentes são tão difíceis quanto raras.

Claro que não estou falando de nenhuma "salvação", mas tem ligação com "ética".

"Qual é o limite do tempo que vou investir nisso, sem sacrificar muito a conveniência?"

Depende de quanto incomoda a infiltração íntima de megacorporações e o chorume mental de seus bilionários, em quase todos os aspectos da vida.

Além do incômodo pessoal, há o dano coletivo. Independentemente de fazer diferença no quadro maior, quanto vamos consentir com nossas escolhas? Ou então:

  • "O benefício pessoal que ganho me associando a big techs compensa o dano maior?"
  • Com um empurrãozinho dos valores dominantes, pode se chegar em: "Danos maiores têm mesmo importância?"
  • Na cegueira do encanto com as migalhas, também é comum: "Será que há de fato algum dano? Será que essas corporações não estão nos ajudando?"

Nessa progressão, vemos que ser fã de bilionário ou corporação produz efeitos bastante reais.2

Nesse sentido, não há absolutamente nenhum "desperdício de tempo" no projeto de nos libertarmos o quanto for possível das big techs (e também big oil, big meat, big pharma etc).

Um efeito adverso que notei foi uma intensificação dessa minha "alergia", devido à baixa exposição direta ao vetor de contaminação. Quando vejo, por exemplo, alguém pagando pau ou replicando a estratégia de divulgação dessas megacorporações, preciso me controlar; mas treinar essa paciência também cria uma habilidade útil.

No final, se é mais ou menos difícil driblar o domínio big tech e os detalhes técnicos para isso não são tanto a questão. Mas, com o reconhecimento de que é um golpe, uma opressão disfarçada, fica tudo mais fácil. Essa é a chave. Talvez seja impossível escapar 100%, mas caminha-se um passo de cada vez.

E não estou sugerindo que a solução seja cada pessoa ir se desvencilhando. Essas são apenas atitudes e princípios individuais. O ideal seria desmembrar esses trustes monopolistas — na direção das regulações (ainda tímidas) que começaram a ser implantadas na Europa — e restaurar as leis (destruídas por Reagan) que impediam sua formação, da época pré-vale-tudo-corporativo.

(Linkei no Órbita e tem comentários lá.)


  1. O deus de SpinozaO deus de Spinoza
    Eu acredito no deus de Spinoza, que se revela na harmonia legítima do mundo, e não em um deus que se preocupa com o destino e os atos da humanidade. Albert Eisntein, em carta ao rabino Herbert Goldstein (1929). Tinha…
     

  2. Nesta semana, apareceu o "Manifesto Tecno-Otimista". Quando passei o olho, achei que fosse piada, mas não… incrível! Como resposta, o premiado artista Ben Grosser colocou essas hilárias tarjas pretas, para sumarizar o conteúdo.