Porque amo ‘Cyberpunk 2077’

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Terminei semana passada a expansão Phantom Liberty (2023) do jogo Cyberpunk 2077 (2020). Formidável como a obra principal. Veio também uma atualização (patch 2.x) que alterou significativamente o game, o que me animou a continuar jogando até o final de novo.

Como já mencionei (Games envolventesGames envolventes
Geralmente não compro games novos, são muito caros. Duas exceções foram Cyberpunk 2077 e God of War. Cyberpunk foi o jogo responsável por eu voltar a jogar games, há pouco mais de um ano. Estava afastado desse universo há uns…
), Cyberpunk 2077 foi o que me fez voltar a jogar, após uns 15 anos. Fiquei espantado em como games evoluíram nesse intervalo. Além do progresso técnico, enredo e personagens ganharam profundidade inédita. Acabam sendo mais imersivos que livros ou filmes.

Mas isso é restrito. Poucos games se aproximam desse nível. Nenhum jogo que experimentei nos últimos três anos se igualou. Alguns chegaram perto, como a trilogia Mass Effect ou God of War (PC, 2022).

Captura de tela de Cyberpunk 2077

Um aspecto fenomenal de Cyberpunk 2077 é sua distopia maravilhosamente horrorosa, sendo uma continuidade lógica do presente. Night City parece a Los Angeles de Blade Runner elevada ao cubo e multiplicada por implantes cibernéticos e realidade aumentada. A cidade personifica o tipo de abominação para onde se encaminham nossas sociedades dominadas por megacorporações em todos os níveis.

Como uma personagem diz no jogo, Night City também é uma promessa de sonhos e ambições desvairadas. Só a promessa, porque na verdade é um golpe, um "moedor de carne humana" (nas palavras do Silverhands de Keanu Reeves), como o "sonho americano".

Mas a insinuação de fatalidade e desgraça é ambígua. Toda essa tecnologia cria um fascínio. No jogo, nos deliciamos com cada novo pedaço de metal cromado como um bebê e sua chupeta nova. A comunhão1 com A Máquina está quase completa. Várias das cenas mais perturbadoras expõem o nível bestial com que a tecnologia invadiu corpos e mentes.

É aí que a história também brilha, pois no fundo gira em torno de conexões que ainda preservam humanidade.

Escolhi começar o jogo como "nômade", alguém de fora que chega em Night City sem nada além da ambição e sonhos de grandeza, sem família, amizades ou protetores. Mas laços e alianças vão sendo formadas. Entre os vários possíveis finais para a história, o que determina se foi uma boa conclusão, ou não, é a preservação dessas conexões humanas, mais até do que a própria vida da protagonista. Ponto para os roteiristas, que capturaram precisamente um aspecto essencial da ficção cyberpunk.

É incrível a capacidade que o game tem de evocar a sensação de que vivemos algo muito significativo, ao final do jogo, mesmo sem saber direito o quê. Não deixa de ser amargo, quase uma tragédia, mas do mesmo tipo que é o presente. No entanto, no final que é considerado canônico (sem risco de espoliar), com a gangue de nômades, há esperança com a regeneração de um senso de comunidade, que ficou atrofiado na cidade.

Claro que há limitações em quanto um game pode ser profundo sem sacrificar o entretenimento. Todo o lado extremamente humano de V., a personagem principal, destoa bastante de sua tormenta assassina quando está dizimando quem quer que pare no caminho. Pelo menos, para a maioria dos casos, é possível usar mecanismos não letais para neutralizar adversários.

O presente é cyberpunk?

Vi comentários sobre estarmos vivendo agora um período pré-cyberpunk. Em termos de tecnologias "cyber", sim: ainda não caímos lá. Em relação ao "punk", que é basicamente uma resistência anárquica às grandes corporações, também: isso ainda não é uma força contracultural influente. Mas um elemento central que antecede tanto o "cyber" quanto o "punk" já está aí: a dominação e controle das sociedades pelas megacorporações.

Quando William Gibson praticamente inventou o gênero cyberpunk com o livro Neuromancer, em 1984, a era Reagan estava no auge. Ali, junto com Thatcher e a ideologia neoliberal que terminou disseminada pelo planeta, foram soltas as rédeas governamentais que ainda mantinham certo controle sobre corporações, impedindo monopólios e trustes.

O resultado disso hoje é que o capitalismo regrediu para um tipo de tecnofeudalismo. O bilionário Peter Thiel (fundador do PayPal) resumiu bem essa ideologia de monopólio feudalista — por trás das megacorporações que hoje influenciam governos a ponto de controlá-los — quando disse: "Competição é para perdedores." (Ou seja, quem é elite monopoliza.)

Como fica o mundo se tal direção se manter? Somando os avanços nas tecnologias de informação e cibernéticas (e agora o colapso socioambiental), chegamos na distopia cyberpunk. Como no excelente filme Blade Runner 2049, em que não sobrou uma única árvore ou animal não humano; lavouras se resumem a estéreis campos com estufas nas periferias para o cultivo de vermes geneticamente modificados (taí uma lucrativa ideia para a Bayer/Monsanto).

Algo que nos anos 80 não se imaginava é que o "ciberespaço", concebido na época como algo psicodélico e com potencial até libertador, seria hoje tão ridicularizado, como o metaverso do Zuckerberg. Também não foi previsto o uso massivo de redes sociais como um mecanismo para controlar a opinião e turbinar o narcisismo que alimenta a ideologia dominante.

Pra mim, cyberpunk era e continua fascinante, quase um sinônimo de scifi, já que meu primeiro livro de ficção científica foi Neuromancer. Tinha lido Fundação do Asimov na escola, e era fã de Star Wars e Terminator; mas isso chegou involuntariamente. Já a primeira história escrita do gênero que decidi ir atrás, ainda adolescente, foi esse clássico precursor.

Captura de tela de Cyberpunk 2077


  1. Tem um livro clássico sobre abdução alienígena (supostamente não ficção) chamado Comunhão (1987), de Whitley Strieber. Não acompanho isso, mas é um relato interessante sob a ótica da ficção científica e da simbologia — não li, me contaram. O abduzido pergunta aos alienígenas o que eles de fato querem da humanidade. Um dos "cinzentos" com mente em colmeia finalmente revela: "Comunhão!". Querem se fundir com nossos corpos e mentes.