A bostificação da internet (enshittification)

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Segue abaixo a tradução do texto da palestra de Cory Doctorow sobre a "bostificação" (enshittification) big tech. Esse é um termo que se disseminou rapidamente entre quem acompanha tecnologia, há mais ou menos um ano.

Não significa apenas que a "internet virou uma bosta". Isso também, claro (talvez a raiz do sucesso esteja aí). Mas há toda uma dinâmica de exploração nessa piora. É um tipo de golpe que empresas como Google, Microsoft, Apple e Facebook aplicam, e que se tornou o modo padrão como empresas de tecnologia atuam.

Quando ver um sedutor aplicativo ou serviço "gratuito", especialmente de grandes corporações, desconfie. Isso se aplica também aos dominantes e, claro, os apps pagos não melhoram a situação; muitas vezes são apenas a próxima etapa do golpe.

Além de ser um popular autor de ficção especulativa, Cory escreve bastante não ficção sobre tecnologia e política, atuando como ativista na área de direitos digitais.

O texto acaba resumindo seu mais recente livro de não ficção: The Internet Con (O golpe da internetO golpe da internet
The Internet Con (2023) é o mais recente livro de não ficção de Cory Doctorow, que também escreve ótima ficção especulativa. Red Team Blues, Cory Doctorow Trilogia Little Brother Radicalized e This Machine… O livro é sobre uma causa que…
). Então não é breve, mas cativa especialmente.

O original em inglês está no site de Cory. Há também o vídeo.


Minha palestra McLuhan sobre bostificação

Cory Doctorow

2024.01.29, palestra anual Marshall McLuhan do festival Transmediale em Berlim, Alemanha

(leitura: 29 min.)

Ano passado, criei o termo "bostificação" para descrever a maneira como as plataformas se deterioram. Essa palavrinha obscena atingiu grandes números, ela realmente tocou no zeitgeist. Quero dizer, a American Dialect Society fez dela a Palavra do Ano para 2023 (o que, suponho, significa que agora estou definitivamente ganhando um emoji de cocô em minha lápide).

Então o que é bostificação e por que isso pegou fogo? É a minha teoria que explica como a Internet foi colonizada por plataformas e por que todas essas plataformas degeneram de forma tão rápida e completa; por que isso importa e o que podemos fazer a respeito.

Estamos todos vivendo o embostaloceno, um grande embostamento, no qual os serviços importantes para nós, dos quais dependemos, estão se transformando em pilhas gigantescas de bosta.

Isso é frustrante. É desmoralizante. É até mesmo aterrorizante.

Acho que o framework da bostificação ajuda muito a explicar isso, tirando-nos do reino misterioso das "grandes forças da história" e levando-nos para o mundo material de decisões específicas tomadas por pessoas nomeadas — decisões que podemos reverter e pessoas cujos endereços e pontos fracos podemos conhecer.

O processo de bostificação nomeia o problema e propõe uma solução. Não se trata apenas de uma forma de dizer "as coisas estão piorando" (embora, é claro, não me importe se você quiser usá-la dessa forma. É uma palavra inglesa. Não temos um der Rat für englische Rechtschreibung [Conselho de Ortografia da Língua Inglesa]. O inglês é livre para todos. Pirem, meine Kerle [pessoal]!).

Mas caso você queira se referir à bostificação de forma mais precisa e técnica, vamos examinar como ela funciona.

É um processo de três estágios: primeiro, as plataformas são boas para seus usuários; depois, elas abusam de seus usuários para tornar as coisas melhores para seus clientes comerciais; finalmente, elas abusam desses clientes comerciais para recuperar todo o valor para si mesmas. Então, elas morrem.

Vamos fazer um estudo de caso; o que poderia ser melhor do que o Facebook?

Facebook é uma empresa que foi fundada para avaliar, de forma não consensual, a capacidade de transar dos alunos de Harvard, e só piorou depois disso.

Quando o Facebook começou, estava aberto apenas para universitários e estudantes do ensino médio dos EUA com endereços .edu e k-12.us. Mas, em 2006, foi aberto ao público em geral. Disse ao público: "Sim, eu sei que todos vocês estão usando o Myspace. Mas o Myspace é de propriedade de Rupert Murdoch — um bilionário maligno, que espiona você sem parar!?"

"Inscreva-se no Facebook e nós nunca o espionaremos. Venha e nos diga quem é importante para você neste mundo, e nós criaremos um feed pessoal que consiste apenas no que essas pessoas publicam, para o consumo daqueles que decidirem segui-las."

Esse foi o primeiro estágio. O Facebook tinha um superávit — o dinheiro de seus investidores — e alocou isso para seus usuários finais. Esses usuários finais passaram a se trancar no FB. O FB — como a maioria das empresas de tecnologia — tem a seu favor os efeitos de rede. Um produto ou serviço tem efeitos de rede quando melhora à medida que mais pessoas se inscrevem para usá-lo. Você entrou no FB porque seus amigos estavam lá, e outros se inscreveram porque você estava lá.

Mas o FB não tinha apenas fortes efeitos de rede, ele tinha elevados custos de mudança. Custos de mudança são tudo aquilo de que você precisa abrir mão quando abandona um produto ou serviço. No caso do Facebook, eram todos os amigos que você seguia e que seguiam você. Em teoria, todos vocês poderiam ter saído para outro lugar; na prática, foram prejudicados pelo problema da ação coletiva.

É difícil fazer com que muitas pessoas façam a mesma coisa ao mesmo tempo. Você e seus seis amigos aí terão dificuldades para chegar a um acordo sobre onde tomar um drinque depois da palestra de hoje. Como você e seus 200 amigos do Facebook poderiam chegar a um acordo sobre quando seria a hora de sair do Facebook e para onde?

Assim, usuários finais do FB se engajaram em mutuamente se tornarem reféns, e isso os manteve grudados na plataforma. Em seguida, o FB explorou essa situação de refém, retirando o superávit dos usuários finais e alocando-o para dois grupos de clientes comerciais: anunciantes e publicações.

Para anunciantes, o FB disse: "Lembra quando dissemos a esses ingênuos que não os espionaríamos? Nós mentimos. Nós os espionamos do ânus até a boca. Venderemos a vocês o acesso a esses dados de vigilância na forma de segmentação refinada de anúncios e dedicaremos recursos substanciais de engenharia para impedir a fraude de anúncios. Seus anúncios são extremamente baratos para divulgar e não pouparemos despesas para garantir que, quando você pagar por um anúncio, um ser humano real o veja".

Para publicações, o FB disse: "Lembra quando dissemos a esses ingênuos que só mostraríamos as coisas que eles pedissem para ver? Nós mentimos! Faça o upload de pequenos trechos do seu site, anexe um link e nós o enfiaremos de forma não consensual nos olhos de usuários que nunca pediram para vê-lo. Estamos oferecendo a você um funil de tráfego gratuito que levará milhões de usuários ao seu site para monetizar como quiser, e esses usuários ficarão presos a você quando assinarem seu feed". E assim, anunciantes e publicações também ficaram presos à plataforma, dependentes desses usuários.

Usuários mantiveram uns aos outros como reféns, e esses reféns também mantiveram publicações e anunciantes como reféns, de modo que todos ficaram presos.

Isso significa que chegou a hora do terceiro estágio da bostificação: retirar o superávit de todos e entregar aos acionistas do Facebook.

Para usuários, isso se referiu a reduzir a porção de conteúdo das contas que você seguia para uma dose homeopática, e preencher o vazio resultante com anúncios e conteúdo pago para impulsionar o conteúdo de publicações.

Para anunciantes, isso se referiu a aumentar preços (dos anúncios) e reduzir medidas antifraude, de modo que anunciantes pagavam muito mais por anúncios que tinham muito menos probabilidade de serem vistos por uma pessoa.

Para publicações, isso se referiu a suprimir algoritmicamente o alcance de suas postagens, a menos que incluíssem uma parcela cada vez maior de seus artigos no trecho, até que qualquer coisa que não fosse o texto completo provavelmente seria desqualificada de ser enviada aos assinantes, muito menos ser incluída nos feeds de sugestões algorítmicas.

E então o FB começou a punir as publicações por incluírem um link para seus próprios sites, de modo que eles foram obrigados a publicar feeds de texto completo sem links, o que significa que se tornaram fornecedores de commodities para o Facebook, totalmente dependentes da empresa, tanto para alcance quanto para monetização, por meio do serviço de publicidade cada vez mais desonesto.

Quando algum desses grupos reclamou, o FB apenas repetiu a lição que todo executivo de tecnologia aprendeu no MBA de Darth Vader: "Eu alterei o acordo. Reze para que eu não altere ainda mais."

O Facebook entra agora na fase mais perigosa da bostificação. Ele quer retirar todo o superávit disponível e deixar apenas um valor residual no serviço suficiente para manter usuários finais presos uns aos outros e clientes comerciais presos aos usuários finais, sem deixar nada mais na mesa, de modo que cada centavo extraível seja retirado e devolvido aos seus acionistas.

Mas esse é um equilíbrio muito frágil, porque é bem tênue a diferença entre "odeio esse serviço, mas não consigo abandoná-lo" e "Jesus Cristo, por que esperei tanto tempo para sair? Tirem-me daqui!".

Basta um escândalo Cambridge Analytica, um denunciante interno, um tiroteio em massa transmitido ao vivo para que usuários saiam correndo, e então o FB descobre que os efeitos de rede são uma faca de dois gumes.

Se usuários não puderem sair porque todos os outros estão ficando, quando todos começarem a sair, não haverá motivo para deixar de sair também.

Essa é a bostificação terminal, a fase em que uma plataforma se torna um monte de merda. Essa fase geralmente é acompanhada de pânico, que tech bros chamam eufemisticamente de "mudança estratégica".

É assim que recebemos "mudanças estratégicas" como: "No futuro, todos os usuários da Internet serão transformados em personagens de desenho animado sem pernas, sem sexo, com baixa definição e altamente vigiados em um mundo virtual chamado "o metaverso", que roubamos de um romance satírico cyberpunk de 25 anos atrás".

Essa é a progressão da bostificação. Se a bostificação fosse uma doença, chamaríamos isso de "história natural" da bostificação. Mas isso não lhe diz como a bostificação funciona, nem por que tudo está se bostificando agora mesmo, e sem esses detalhes, não podemos saber o que fazer a respeito.

O que levou ao embostaloceno? O que há neste momento que levou ao Grande Embostamento? Foi o fim da Política de Taxa de Juros Zero (ZIRP)? Foi uma mudança na liderança dos gigantes da tecnologia? Mercúrio está retrógrado?

Nenhuma das opções acima.

O período de dinheiro livre consumido certamente fez com que as empresas de tecnologia tivessem muito superávit para distribuir. Mas o Facebook começou a se bostificar muito antes do fim da ZIRP, assim como Amazon, Microsoft e Google.

Alguns dos gigantes da tecnologia ganharam novos líderes. Mas a bostificação do Google ficou pior quando os fundadores voltaram para supervisionar durante o pânico da empresa em relação à IA (desculpe-me, "mudança estratégica IA").

E não pode ser Mercúrio retrógrado, porque sou de câncer e, como todos sabem, cancerianos não acreditam em astrologia.

Quando várias entidades independentes mudam da mesma forma ao mesmo tempo, isso é um sinal de que o ambiente mudou, e foi isso que aconteceu com a tecnologia.

Empresas de tecnologia, como todas as empresas, têm imperativos conflitantes. Por um lado, elas querem ganhar dinheiro. Por outro lado, ganhar dinheiro envolve contratar e motivar uma equipe competente e fabricar produtos que os clientes queiram comprar. Quanto mais valor uma empresa permitir que seus funcionários e clientes extraiam, menos valor ela poderá dar aos seus acionistas.

O equilíbrio em que as empresas produzem coisas de que gostamos de forma honrada com preço justo é um em que cobrar mais, piorar a qualidade e prejudicar trabalhadores custa mais do que a empresa ganharia se jogasse sujo.

Há quatro forças que disciplinam as empresas, servindo como restrições aos seus impulsos bostificantes.

Primeira: a concorrência. Empresas que temem que você leve seu negócio para outro lugar são cautelosas quanto a piorar a qualidade ou aumentar preços.

Segunda: regulamentação. Empresas que temem que um órgão regulador as multe mais do que esperam ganhar com as fraudes, trapacearão menos.

Essas duas forças afetam todos os setores, mas as duas seguintes são bem mais específicas da tecnologia.

Terceira: auto-assistência. Computadores são extremamente flexíveis, assim como os produtos e serviços digitais que criamos com eles. O único computador que sabemos como fabricar é o de arquitetura de von Neumann com completude de Turing, um computador que pode executar todos os programas válidos.

Isso significa que usuários sempre podem se valer de programas que desfazem os anti-recursos que transferem seu valor para os acionistas da empresa. Pense em uma mesa de diretoria onde alguém diz: "Calculei que tornar nossos anúncios 20% mais invasivos nos renderá 2% a mais de receita por usuário".

Em um mundo digital, outra pessoa pode muito bem dizer: "Sim, mas se fizermos isso, 20% dos nossos usuários instalarão bloqueadores de anúncios e nossa receita com esses usuários cairá para zero, para sempre".

Isso significa que empresas digitais são limitadas pelo medo de que alguma manobra bostificadora leve seus usuários a pesquisar no Google: "Como faço para desbostificar isso?"

Quarta e última: trabalhadores. Trabalhadores da área de tecnologia têm uma densidade sindical muito baixa, mas isso não significa que eles não tenham força laboral. A histórica "escassez de talentos" do setor de tecnologia significava que trabalhadores tinham muita influência sobre seus chefes. Trabalhadores que discordavam de seus chefes podiam se demitir, atravessar a rua e conseguir outro emprego — um emprego melhor.

Eles sabiam disso, e seus chefes também. Ironicamente, isso tornava os trabalhadores da área de tecnologia altamente exploráveis. Em sua maioria, trabalhadores da área de tecnologia se viam como fundadores em espera, empreendedores que estavam temporariamente recebendo um salário, figuras heroicas da missão tecnológica.

É por isso que lemas como "não seja mau", do Google, e "torne o mundo mais aberto e conectado", do Facebook, eram importantes: eles incutiam um senso de missão nos trabalhadores. É o que Fobazi Ettarh chama de "fascínio vocacional", ou o que Elon Musk chama de ser "extremamente hardcore".

Trabalhadores da área de tecnologia tinham muito poder de barganha, mas não o flexibilizavam quando seus chefes exigiam que sacrificassem sua saúde, suas famílias e seu sono para cumprir prazos arbitrários.

Enquanto seus chefes transformassem seus locais de trabalho em "campus" extravagantes, com academias, cafeterias gourmet, serviço de lavanderia, massagens e congelamento de óvulos, pessoas trabalhadoras poderiam dizer a si mesmas que estavam sendo mimadas, em vez de serem obrigadas a trabalhar como mulas do governo.

Mas para os chefes, há uma desvantagem em motivar seus funcionários com apelos a um senso de missão, que é: seus funcionários sentirão um senso de missão. Portanto, quando você pedir a eles que bostifiquem os produtos para os quais arruinaram a saúde, trabalhadores terão uma sensação de profunda lesão moral, reagirão com indignação e ameaçarão pedir demissão.

Assim, os próprios trabalhadores da área de tecnologia foram o último baluarte contra a bostificação.

A era pré-bostificação não foi uma época de melhor liderança. Executivos não eram melhores. Eles eram pressionados. Seus piores impulsos foram controlados pela concorrência, regulamentação, auto-assistência e o poder dos trabalhadores.

Então o que aconteceu?

Uma a uma, cada uma dessas restrições foi corroída até se dissolver, deixando o impulso bostificante sem controle, dando início ao embostaloceno.

Tudo começou com a concorrência. Desde a Era Dourada até os anos Reagan, o objetivo das leis de concorrência era promover a concorrência. A lei antitruste dos Estados Unidos tratava o poder corporativo como perigoso e procurava reduzi-lo. Leis antitruste europeias foram modeladas com base nas leis dos EUA, importadas pelos arquitetos do Plano Marshall.

Porém, a partir da era neoliberal, autoridades sobre a concorrência de todo o mundo adotaram uma doutrina chamada de "bem-estar do consumidor", que sustentava que os monopólios eram uma prova de qualidade. Se todos estivessem comprando na mesma loja e adquirindo o mesmo produto, isso significava que era a melhor loja, vendendo o melhor produto — não que alguém estivesse trapaceando.

E assim, em todo o mundo, governos pararam de aplicar suas leis de concorrência. Eles simplesmente as ignoraram quando as empresas as desrespeitaram. Essas empresas se fundiram com seus principais concorrentes, absorveram pequenas empresas antes que elas pudessem se tornar grandes ameaças. Elas realizaram uma orgia de consolidação que produziu os setores mais consanguíneos que se possa imaginar; setores inteiros tão incestuosos que desenvolveram mandíbulas de Habsburgo, desde a produção de óculos até o frete marítimo, garrafas de vidro até processamento de pagamentos, vitamina C até cerveja.

A maior parte de nossa economia global é dominada por cinco ou menos empresas globais. Se empresas menores se recusam a se vender a esses cartéis, as gigantes têm carta branca para desrespeitar ainda mais a lei da concorrência, com "preços predatórios" que impedem que um rival independente ganhe espaço.

Quando a Diapers.com recusou a oferta de aquisição da Amazon, a Amazon queimou US$ 100 milhões, vendendo fraldas muito abaixo do custo por meses, até que a Diapers.com faliu e a Amazon a comprou por centavos de dólar, e a fechou.

A concorrência é uma lembrança distante. Como diz Tom Eastman, a Web se transformou em "cinco sites gigantes cheios de capturas de tela de textos dos outros quatro", de modo que essas empresas gigantes não temem mais perder nossas transações.

Lily Tomlin costumava interpretar uma personagem no programa de TV Laugh In, como uma telefonista da AT&T que fazia comerciais para o sistema Bell. Cada um deles terminava com ela dizendo: "Não nos importamos. Não precisamos fazer isso. Somos a companhia telefônica".

Os gigantes de hoje não são limitados pela concorrência.

Eles não se importam. Não precisam fazer isso. Eles são o Google.

Essa é a primeira restrição que se foi e, à medida que se foi, a segunda restrição — a regulamentação — também estava condenada.

Quando um setor é composto por centenas de empresas de pequeno e médio porte, ele se torna uma turba, uma multidão. Centenas de empresas não conseguem chegar a um acordo sobre o que dizer ao Parlamento, ao Congresso ou à Comissão. Elas não conseguem nem mesmo concordar sobre como organizar uma reunião para discutir o assunto.

Mas quando um setor se reduz a um punhado de empresas dominantes, ele deixa de ser uma multidão e se torna um cartel.

Cinco empresas, ou quatro, ou três, ou duas, ou apenas uma, acham fácil convergir em uma única mensagem para seus reguladores e, sem a "concorrência desleixada" corroendo seus lucros, elas têm muito dinheiro para distribuir.

Como o Facebook, que entrega ao ex-vice-primeiro-ministro do Reino Unido Nick Clegg milhões todos os anos para ele espalhar falsidades pela Europa, dizendo a seus ex-colegas que o Facebook é a única coisa barrando o "ciberespaço europeu" do Partido Comunista Chinês.

A captura da regulação pelo setor de tecnologia permite que ele ignore as regras que restringem setores menos concentrados. Empresas podem fingir que violar leis trabalhistas, do consumidor e de privacidade não tem problema, porque as violam com um aplicativo.

É por isso que a concorrência é importante: não é apenas porque a concorrência faz com que empresas trabalhem mais e compartilhem valor com clientes e trabalhadores, mas porque a concorrência impede que empresas se tornem grandes demais para falir e grandes demais para serem presas.

Agora, há muitas coisas que não queremos que sejam melhoradas por meio da concorrência, como invasões de privacidade. Depois que a UE aprovou sua lei de privacidade histórica, a GDPR, houve um evento de extinção em massa para pequenas empresas de publicidade com tecnologia na UE. Essas empresas desapareceram em massa, e isso é OK.

Elas eram ainda mais invasivas e imprudentes do que as grandes empresas de tecnologia sediadas nos EUA. Afinal de contas, elas tinham menos a perder. Não queremos concorrência na vigilância comercial. Não queremos produzir uma eficiência cada vez maior na violação de nossos direitos humanos.

Mas: Google e Facebook — que fingem se chamar Alphabet e Meta — não foram afetados pela lei de privacidade europeia. Isso não é porque eles não violam a GDPR (violam!). É porque fingem estar sediados na Irlanda, um dos mais notórios redutos de crimes corporativos da UE.

E a Irlanda compete com os outros paraísos do crime da UE — Malta, Luxemburgo, Chipre e, às vezes, a Holanda — para ver qual país pode oferecer o ambiente mais hospitaleiro para todos os tipos de crimes. Porque o tipo de empresa que pode hastear uma bandeira irlandesa por conveniência é móvel o suficiente para mudar para uma bandeira maltesa se os irlandeses começarem a aplicar as leis da UE.

É assim que se obtém uma Comissão Irlandesa de Proteção de Dados que processa menos de 20 casos importantes por ano, enquanto o comissário de dados da Alemanha lida com mais de 500 casos importantes, embora a Irlanda seja nominalmente o lar das empresas que mais invadem a privacidade no continente.

Assim, Google e Facebook podem agir como se fossem imunes à lei de privacidade, porque violam a lei com um aplicativo; da mesma forma que a Uber pode violar a lei trabalhista e alegar que isso não conta porque eles fazem isso com um aplicativo.

O algoritmo de precificação de mão de obra da Uber oferece a diferentes motoristas pagamentos diferentes pelo mesmo trabalho, algo que Veena Dubal chama de "discriminação salarial algorítmica". Se você for mais seletivo em relação aos trabalhos que aceitará, a Uber lhe pagará mais por cada viagem.

Mas se você aceitar esses pagamentos mais altos e abandonar quaisquer outras atividades secundárias que lhe permitem pagar suas contas, enquanto é exigente em relação às suas viagens com a Uber, a Uber reduzirá gradualmente o pagamento, aumentando e diminuindo conforme você se torna mais ou menos seletivo, jogando-o como um peixe na linha até que você acabe — inevitavelmente — perdendo para o incansável robô de preços, e acabe preso a salários baixos e sem todas as suas atividades secundárias.

Depois, há a Amazon, que viola as leis de proteção ao consumidor, mas diz que isso não importa, porque ela faz isso com um aplicativo. A Amazon ganha US$ 38 bilhões/ano com seu sistema de "publicidade". Publicidade entre aspas porque eles não estão vendendo anúncios, mas sim posicionamentos nos resultados de pesquisa.

As empresas que gastam mais em "anúncios" vão para o topo, mesmo que estejam oferecendo produtos piores a preços mais altos. Se você clicar no primeiro link em um resultado de pesquisa da Amazon, em média pagará um adicional de 29% sobre o preço mais baixo do serviço. Clique em um dos quatro primeiros itens e pagará 25% a mais. Em média, você precisa descer dezessete itens para encontrar a melhor oferta na Amazon.

Qualquer comerciante que fizesse isso com você em uma loja física seria multado até o esquecimento. Mas a Amazon capturou seus reguladores, de modo que pode violar seus direitos e dizer: "isso não conta, fizemos isso com um aplicativo".

É nesse ponto que a terceira restrição, a auto-assistência, certamente seria útil. Se você não quiser que sua privacidade seja violada, não precisa esperar que o órgão regulador de privacidade irlandês aja, basta instalar um bloqueador de anúncios.

Mais da metade de todos os usuários da Web está bloqueando anúncios. Mas a Web é uma plataforma aberta, desenvolvida na época em que a tecnologia era composta por centenas de empresas que se enfrentavam, incapazes de capturar seus reguladores.

Hoje, a Web está sendo devorada por aplicativos, e os aplicativos estão prontos para a bostificação. A captura regulatória não é apenas a capacidade de desrespeitar a regulamentação, é também a capacidade de cooptar a regulamentação, de mandar a regulamentação contra seus adversários.

Gigantes da tecnologia de hoje se tornaram grandes explorando recursos de auto-assistência. Quando o Facebook estava dizendo aos usuários do Myspace que eles precisavam escapar do panóptico maligno da mídia social australiana de Rupert Murdoch, ele não disse apenas a esses usuários do Myspace: "Que se danem seus amigos, venham para o Facebook e apenas fiquem olhando a bacana política de privacidade, até que eles cheguem aqui".

Ele lhes deu um bot. Você fornecia ao bot seu nome de usuário e senha do Myspace, e ele fazia login no Myspace e fingia ser você. E copiava tudo o que estava esperando na sua caixa de entrada, transferindo para a caixa de entrada do FB. E você podia responder, e ele enviava suas respostas automaticamente para o Myspace.

Quando a Microsoft estava tirando o oxigênio de mercado da Apple ao se recusar a fornecer uma versão funcional do Microsoft Office para Mac — de modo que escritórios estavam jogando fora os Macs de seus designers e dando a eles PCs com placas de vídeo atualizadas e versões do Photoshop e do Illustrator para Windows —, Steve Jobs não implorou a Bill Gates para atualizar o Office para Mac.

Ele fez com que seus tecnólogos aplicassem engenharia reversa no Microsoft Office para criar um conjunto compatível, o iWork Suite, cujos aplicativos Pages, Numbers e Keynote podiam ler e gravar perfeitamente arquivos do Word, Excel e Powerpoint da Microsoft.

Quando o Google entrou no mercado, ele enviou seu rastreador para todos os servidores web na Terra, onde se apresentou como um usuário da Web: "Olá! Olá! Você tem alguma página da Web? Obrigado! Que tal mais algumas? Que tal mais?"

Mas todo pirata quer ser um almirante. Quando o Facebook, a Apple e o Google estavam fazendo essa interoperabilidade adversária, isso era progresso. Se você tentar fazer o mesmo com eles, isso é pirataria.

Tente criar um cliente alternativo para o Facebook e eles dirão que você violou as leis dos EUA, como a Digital Millennium Copyright Act, e as leis da UE, como o Artigo 6 da EUCD.

Tente criar um programa para Android que possa executar aplicativos do iPhone e reproduzir dados das lojas de mídia da Apple e eles o bombardearão até que os escombros tremam.

Se você tentar raspar tudo do Google, eles lançarão ogivas nucleares até você reluzir.

A captura regulatória da tecnologia é impressionante. Veja a lei que mencionei anteriormente, a Seção 1201 do Digital Millennium Copyright Act ou DMCA. Bill Clinton a assinou em 1998, e a UE a importou como Artigo 6 da EUCD em 2001

Trata-se de uma proibição geral de remover qualquer tipo de criptografia que restrinja o acesso a uma obra protegida por direitos autorais — coisas como ripar DVDs ou desbloquear um telefone — com penalidades de cinco anos de prisão e multa de US$ 500 mil para uma primeira infração (sem antecedentes).

Essa lei foi tão ampliada que pode ser usada para prender criadores por concederem acesso a suas próprias criações.

Veja como isso funciona: em 2008, a Amazon comprou a Audible, uma plataforma de audiolivros, em uma aquisição anticompetitiva. Hoje, a Audible é monopolista, com mais de 90% do mercado de audiolivros. A Audible exige que todos os criadores em sua plataforma vendam com o "gerenciamento de direitos digitais" da Amazon, que os tranca nos aplicativos da Amazon.

Então digamos que eu escreva um livro, leia-o em um microfone, pague milhares de dólares a um diretor e a um engenheiro para transformá-lo em um audiolivro e o venda na plataforma monopolista, a Audible, que controla mais de 90% do mercado.

Se mais tarde eu decidir sair da Amazon e permitir que você vá comigo para uma plataforma rival, não terei sorte. Se eu lhe fornecer uma ferramenta para remover a criptografia da Amazon do meu audiolivro, para que você possa reproduzi-lo em outro aplicativo, eu cometo um crime, punível com uma sentença de 5 anos e uma multa de meio milhão de dólares, para uma primeira infração.

Essa é uma pena mais severa do que a que você enfrentaria se simplesmente pirateasse o audiolivro de um site de torrent. E também é mais severa do que a punição que você receberia por furtar o audiolivro em CD do caminhão estacionado. É mais severa do que a sentença que você receberia por sequestrar o caminhão que entregou o CD.

Portanto, pense novamente em nossos bloqueadores de anúncios. 50% dos usuários da Web estão usando bloqueadores de anúncios. 0% dos usuários de aplicativos usam bloqueadores de anúncios, porque adicionar um bloqueador a um aplicativo exige que você primeiro remova sua criptografia, e isso é um crime (Jay Freeman chama isso de "crime de desrespeito ao modelo de negócios").

Portanto, quando alguém em uma sala de reuniões diz "vamos tornar nossos anúncios 20% mais desagradáveis (em apps) e obter um aumento de receita de 2%", ninguém se opõe ao fato de que isso pode levar usuários a pesquisar no Google: "como faço para bloquear anúncios?". Afinal, a resposta é: "você não pode".

Na verdade, é mais provável que alguém na sala da diretoria diga: "Vamos tornar nossos anúncios 100% mais desagradáveis e obter um aumento de receita de 10%" (é por isso que toda empresa quer que você instale um aplicativo em vez de usar o site).

Não há nenhuma razão para que trabalhadores de aplicativo que estão enfrentando discriminação salarial algorítmica não possam instalar um contra-aplicativo que coordene todos os motoristas do Uber para rejeitar todas as viagens, a menos que ganhem um determinado mínimo de pagamento.

Nenhum motivo, exceto o desprezo criminoso pelo modelo de negócios, a ameaça de que os artesãos que criaram esse contra-aplicativo iriam à falência ou seriam presos por violar a DMCA 1201, a Lei de Fraude e Abuso de Computador, a marca registrada, direitos autorais, patente, o contrato, de sigilo comercial, de não divulgação, de não concorrência, ou em outras palavras: a "lei de propriedade intelectual" (PI).

"PI" é apenas um eufemismo para "uma lei que me permite ir além das paredes da minha empresa e controlar a conduta de meus críticos, concorrentes e clientes". E "aplicativo" é apenas um eufemismo para "uma página da Web envolta em PI suficiente para que seja um crime modificá-la para proteger direitos trabalhistas, do consumidor e de privacidade de seu usuário".

Não nos importamos. Não precisamos fazer isso. Somos a empresa telefônica.

Mas o que dizer da quarta restrição: os trabalhadores?

Durante décadas, o alto grau de poder de barganha e o fascínio vocacional dos trabalhadores de tecnologia impuseram um teto à bostificação. Mesmo depois que o setor de tecnologia se reduziu a um punhado de gigantes. Mesmo depois de terem capturado seus reguladores para poderem violar nossos direitos trabalhistas, de privacidade e do consumidor. Mesmo depois de terem criado um "modelo de negócios de desrespeito criminoso" e extinguido a auto-assistência para usuários de tecnologia. A tecnologia ainda era limitada pelo senso de dano moral de seus funcionários em face do imperativo de bostificar.

Lembra quando trabalhadores da área de tecnologia sonhavam em trabalhar em uma grande empresa por alguns anos, antes de se lançarem por conta própria para fundar sua própria empresa que derrubaria aquele gigante da tecnologia?

Depois, esse sonho diminuiu para: trabalhar para uma gigante por alguns anos, pedir demissão, fazer uma falsa startup, ser contratado pelo seu antigo empregador, como uma forma complicada de receber um bônus e uma promoção.

Em seguida, o sonho diminuiu ainda mais: trabalhar para uma gigante da tecnologia por toda a sua vida, receber kombucha e massagens gratuitas às quartas-feiras.

E agora, o sonho acabou. Tudo o que resta é: trabalhar para uma gigante da tecnologia até que ela o demita, como aqueles 12.000 funcionários do Google que foram demitidos no ano passado, seis meses depois de uma recompra de ações que teria pago seus salários pelos próximos 27 anos.

Os trabalhadores não são mais um controle para os piores impulsos de seus chefes.

Hoje a resposta para "eu me recuso a piorar este produto" é: "Entregue seu crachá e não deixe que a porta bata na sua bunda ao sair."

Entendo que tudo isso é um pouco deprimente.

OK, realmente deprimente.

Mas escutem! Nós identificamos a doença. Traçamos sua história natural. Identificamos seu mecanismo subjacente. Agora podemos começar a trabalhar em uma cura.

Há quatro restrições que impedem a bostificação: concorrência, regulamentação, auto-assistência e força laboral.

Para reverter a bostificação e evitar seu ressurgimento, precisamos restaurar e fortalecer cada uma delas.

No que diz respeito à concorrência, a situação está realmente muito boa. A UE, Reino Unido, EUA, Canadá, Austrália, Japão e China estão fazendo mais pela concorrência do que fizeram em duas gerações. Eles estão bloqueando fusões, desfazendo fusões existentes, tomando medidas contra preços predatórios e outras táticas desonestas.

Lembre-se de que, nos EUA e na Europa, já temos leis para fazer isso — apenas paramos de aplicá-las na era Helmut Kohl.

Há 22 anos venho travando essas lutas com a Electronic Frontier Foundation e nunca vi um momento tão promissor para uma política tecnológica sólida e bem informada.

Mas os "bostificadores" não estão aceitando isso de braços cruzados. A imprensa de negócios não consegue parar de falar sobre como tudo isso é estúpido e antiquado. Eles chamam pessoas como eu de "hipster antitruste" e odeiam qualquer regulador que realmente faça seu trabalho.

Veja o exemplo de Lina Khan, a brilhante diretora da Comissão Federal de Comércio dos EUA, que fez mais em três anos em matéria de antitruste do que os esforços combinados de todos os seus antecessores nos últimos 40 anos. O Wall Street Journal, de Rupert Murdoch, publicou mais de 80 editoriais criticando Khan, insistindo que ela é uma ideóloga ineficaz que não consegue fazer nada.

Claro, Rupert, é por isso que você publicou 80 editoriais sobre ela.

Porque ela não consegue fazer nada.

Até o Canadá está intensificando a concorrência. Canadá! Terra do bilionário maligno! De Ted Rogers, que é dono das telecomunicações do país; de Galen Weston, que é dono dos supermercados do país; dos Irvings, que basicamente são donos de toda a província de New Brunswick.

Até mesmo o Canadá está fazendo algo a respeito. No último outono, o governo de Trudeau prometeu atualizar a lei de concorrência do Canadá para finalmente proibir o "abuso de posição dominante".

Quero dizer, uau! Acho que quando Galen Weston decidiu se envolver em uma conspiração criminosa para fixar o preço do pão — o crime mais parecido com o de Les Miz que se possa imaginar — isso finalmente chamou a atenção de alguém, não?

A concorrência tem um longo caminho a percorrer, mas em todo o mundo, as leis de concorrência estão passando por uma revitalização massiva. Ronald Reagan e Margaret Thatcher colocaram a lei antitruste em coma nos anos 80, mas ela acordou, está de volta e está furiosa.

E quanto à regulamentação? Como faremos para que empresas de tecnologia parem de usar aquele truque estranho de acrescentar aos seus crimes o termo "com um aplicativo" e assim escapar da fiscalização?

Bem, aqui na UE, eles estão começando a descobrir isso. Este ano, a Lei de Mercados Digitais e a Lei de Serviços Digitais entraram em vigor e permitiram que as pessoas que foram enganadas por empresas de tecnologia recorressem diretamente aos tribunais federais europeus, contornando os cães de guarda desdentados nos notórios paraísos de crimes corporativos da Europa, como a Irlanda.

Nos Estados Unidos, eles podem finalmente obter uma lei de privacidade digital. Vocês não têm ideia de como a lei de privacidade dos EUA é retrógrada. A última vez que o Congresso dos EUA promulgou uma lei de privacidade amplamente aplicável foi em 1988.

A Lei de Proteção à Privacidade de Vídeos torna crime o vazamento do seu histórico de aluguel de vídeos pelos balconistas das locadoras de vídeo. Ela foi aprovada depois que um juiz de direita que estava concorrendo à Suprema Corte teve suas locações publicadas em um jornal de Washington. Os aluguéis não eram nem um pouco constrangedores!

É claro que esse juiz, Robert Bork, não foi confirmado para a Suprema Corte, mas isso se deveu ao fato de ele ser um racista virulento e um vigarista que atuou como Procurador Geral de Nixon.

Mas o Congresso teve a ideia de que os registros de vídeo "deles" poderiam ser os próximos, surtou e aprovou a VPPA.

Essa foi a última vez que americanos tiveram uma grande lei nacional de privacidade. Mil e novecentos. E oitenta. E oito.

Há um minuto.

E o fato é que há um monte de pessoas irritadas com coisas que têm alguma relação com o cenário de privacidade de péssima qualidade dos Estados Unidos. Preocupado com o fato de o Facebook ter transformado o vovô em um Qanon? Que o Insta tenha tornado sua filha adolescente anoréxica? Que o TikTok esteja fazendo uma lavagem cerebral nos mileniais para que citem Osama Bin Laden?

Ou que policiais estejam registrando as identidades de todos os participantes de um protesto Black Lives Matter ou dos tumultos de 6 de janeiro, obtendo dados de localização do Google?

Ou que procuradores-gerais dos estados vermelhos estejam rastreando meninas adolescentes até clínicas de aborto fora do estado?

Ou que pessoas negras estejam sendo discriminadas por plataformas de contratação ou empréstimo on-line?

Ou que alguém esteja fazendo pornografia deepfake de IA com você?

Ter uma lei federal de privacidade com um direito de ação privado — significando que as pessoas podem processar empresas que violam sua privacidade — ajudaria muito a corrigir todos esses problemas. Há uma grande coalizão para esse tipo de lei de privacidade.

E quanto à auto-assistência? Infelizmente, isso está muito mais distante.

O DMA da UE forçará empresas de tecnologia a abrir seus jardins murados para a interoperação. Você poderá usar o Whatsapp para enviar mensagens para pessoas no iMessage, ou sair do Facebook e mudar para o Mastodon e, ainda assim, enviar mensagens para as pessoas que ficaram para trás.

Mas se quiser fazer engenharia reversa de um desses produtos das grandes empresas de tecnologia e modificá-lo para que funcione para você, e não para elas, a UE não tem nada para você.

Essa é uma área que precisa ser melhorada, e acho que os EUA podem ser os primeiros a abrir esse caminho.

Certamente é uma marca da UE forçar empresas de tecnologia a fazer as coisas de uma determinada maneira, enquanto os EUA simplesmente acabam com o poder das empresas de tecnologia de impedir que pessoas mudem o funcionamento de seus produtos.

Minha grande esperança aqui é que a Lei de Stein se aplique: "Qualquer coisa que não possa continuar para sempre uma hora para."

Permitir que as empresas decidam como seus clientes devem usar seus produtos é simplesmente um convite muito tentador para a maldade. A HP tem um prédio inteiro cheio de engenheiros pensando em novas maneiras de prender sua impressora aos cartuchos de tinta oficiais, forçando-o a gastar US$ 10.000 por galão em tinta, para imprimir seus cartões de embarque e listas de compras.

Isso é ofensivo. As únicas pessoas que não concordam são as que comandam monopólios em todos os outros setores, como os monopolistas de tecnologia médica que estão prendendo suas bombas de insulina a seus monitores de glicose, transformando pessoas com diabetes em impressoras a jato de tinta ambulantes.

Por fim, há a força laboral. Aqui na Europa, a densidade sindical é muito maior do que nos EUA, fato que os barões da tecnologia americanos estão aprendendo da maneira mais difícil. Não há nada mais satisfatório no noticiário diário do que a última investida dos sindicatos nórdicos contra aquele cara da Tesla (Musk é o cara da Tesla mais "estilo Edison idiótico" que se possa imaginar).

Mas mesmo nos EUA, há um aumento maciço nos sindicatos de tecnologia. Trabalhadores de tecnologia estão percebendo que não são fundadores em espera. Os dias de massagens gratuitas, de piercings faciais e de usar camisetas pretas que dizem coisas que seu chefe não entende estão chegando ao fim.

Em Seattle, trabalhadores da área de tecnologia da Amazon saíram em solidariedade aos trabalhadores dos depósitos da Amazon, porque todos são trabalhadores.

A única razão pela qual trabalhadores da área de tecnologia não são monitorados por uma IA que notifica seus gerentes se eles forem ao banheiro durante o horário de trabalho é o seu poder de barganha, que está diminuindo rapidamente. Do jeito que as coisas estão indo, programadores da Amazon estarão mijando em garrafas ao lado de suas estações de trabalho (para um cara que construiu um foguete em forma de pênis, Jeff Bezos realmente odeia nossos rins).

Estamos vendo uma ação global ousada e muscular em relação à concorrência, regulamentação e força laboral, com a auto-assistência ficando para trás. Não é cedo demais, porque a má notícia é que a bostificação está chegando a todos os setores.

Se houver um computador em rede nesse setor, as pessoas que o criaram podem executar o manual de MBA de Darth Vader, mudando as regras a cada momento, violando seus direitos e depois dizendo: "Tudo bem, fizemos isso com um aplicativo".

Desde a Mercedes que aluga o pedal do acelerador por mês até as máquinas de lavar louça da "Internet das Coisas" que o prendem a um detergente proprietário, a bostificação está se espalhando por todos os cantos de nossas vidas.

O software não devora o mundo, ele o bostifica.

Mas há um lado positivo nisso tudo: se todos estão ameaçados pela bostificação, então todos têm interesse na desbostificação.

Assim como acontece com a lei de privacidade nos Estados Unidos, a coalizão potencial contra a bostificação é enorme, é imparável.

Os cínicos entre vocês podem não acreditar que isso fará diferença. Afinal de contas, "bostificação" não é o mesmo que "capitalismo"?

Bem, não.

Veja bem, não vou defender o capitalismo aqui. Não sou um crente de fato nos mercados como os mais eficientes alocadores de recursos e árbitros de políticas — se alguma vez houve alguma dúvida, o fracasso total do capitalismo em lidar com a emergência climática certamente a elimina.

No entanto, o capitalismo de 20 anos atrás abriu espaço para uma Internet selvagem e desordenada, um espaço onde pessoas com opiniões desfavoráveis podiam se encontrar, oferecer ajuda mútua e se organizar.

O capitalismo de hoje produziu um shopping center fantasma digital global, repleto de besteiras, aparelhos ruins de empresas com nomes de marcas com muitas consoantes e fraudes de criptomoedas.

A Internet não é mais importante do que a emergência climática, nem a justiça de gênero, a justiça racial, o genocídio ou a desigualdade.

Mas a Internet é o terreno onde travaremos essas lutas. Sem uma Internet livre, justa e aberta, a luta está perdida antes de começar.

Nós podemos reverter a bostificação da Internet. Podemos interromper a bostificação progressiva de todos os dispositivos digitais.

Podemos construir um sistema nervoso digital melhor e resistente à bostificação, capaz de coordenar os movimentos de massa de que precisaremos para combater o fascismo, acabar com o genocídio e salvar nosso planeta e nossa espécie.

Martin Luther King disse: "Talvez seja verdade que a lei não pode fazer alguém me amar, mas pode impedi-lo de me linchar, e acho que isso é bem importante também".

E pode ser verdade que a lei não pode forçar sociopatas corporativos a considerá-lo um ser humano com direito a dignidade e tratamento justo, e não apenas uma carteira ambulante, um suprimento de bactérias intestinais para o imortal organismo-colônia que é uma corporação com responsabilidade reduzida.

Mas isso pode fazer com que esse executivo o tema o suficiente para tratá-lo com justiça e lhe dar dignidade, mesmo que ele não ache que você mereça.

E acho que isso é bem importante também.


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