Boa amostra da ficção delirante de Philip K. Dick

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capa do livro "O Tempo em Marte"

Um dos principais motivos porque adoro ficção científica é o autor Philip K. Dick. Só não li todos os seus livros porque havia pouca coisa traduzida lá pelo final dos anos 90. Então, comecei a buscar edições de Portugal ou em inglês, mas aí a febre foi passando e abandonei o projeto.

Dick talvez seja o autor de sci-fi mais adaptado para as telas. Suas histórias viraram mais de 20 filmes, como Blade Runner, Total Recall (Vingador do Futuro), Minority Report, O Homem Duplo (A Scanner Darkly); e as séries O Homem do Castelo Alto e Sonhos Elétricos. Isso é curioso até, já que seu foco em aspectos psicológicos, filosóficos e psicodélicos (comum na ficção científica New Wave dos anos 60 e 70) não tem apelo de massa.

Um de seus livros mais adorados é O Tempo em Marte (Martian Time Slip, 1964). Não conhecia. Foi delicioso mergulhar de novo em uma trama com todas as marcas registradas de P.K. Dick: tecnologias distópicas, alucinações que desafiam a realidade, degeneração planetária e ácido retrato sociopolítico, beirando a sátira burlesca.

É uma história de realidade alternativa sobre a colonização de Marte. Nesse universo, há oxigênio e vida no planeta, incluindo um povo nativo com o mesmo DNA humano — sugerindo que a vida na Terra e em Marte compartilham uma origem cósmica.

A falência da civilização na Terra também contamina a migração para Marte. O planeta é basicamente um grande deserto, com algumas pequenas cidades lutando pra sobreviver. Já o povo nativo enfrenta miséria, racismo e exploração, possuindo alguma conexão cosmológica misteriosa.

Crianças com anormalidades físicas e mentais são ocultadas da sociedade em um hospital especial. Uma delas parece esconder algo imenso por trás de um silêncio entendido como autismo.

Já o protagonista é assombrado por uma esquizofrenia que também revela uma dimensão mais profunda. Como em várias obras de Dick, um tema central é: qual é a natureza da realidade?

Esse livro é considerado especial por fãs por detalhar como a mente de Dick operava. Já como um primeiro livro dele talvez seja bizarro demais.

Dick foi diagnosticado como esquizofrênico e viveu situações como a de seus livros, tendo até criado obras sobre elas1, como VALIS (Vast Active Living Information System).

Apesar de soar datado em alguns pontos (afinal foi imaginado 60 anos atrás), O Tempo em Marte é profético em muitos pontos, como a atual epidemia de problemas mentais. Bem antes do Realismo Capitalista (2009) de Mark Fisher, ele já apontava esses distúrbios como sendo produtos sociopolítico-culturais, de uma sociedade cronicamente moribunda.

Um outro aspecto da psicose também é explorado, como um tipo de portal para o inconsciente coletivo ou até dimensões mais profundas. Mas sem romantizar, muito pelo contrário. A loucura vai expandindo com a trama, até um ponto digno dos pesadelos mais perturbadores.

Esse flerte com o horror chega a se aproximar do gênero "criança bestial".

Dick costuma ser esnobado pela ala da "literatura séria", principalmente por causa de seus personagens considerados rasos, bidimensionais2 (e também porque escrevia para revistas baratas, sendo publicado por editoras do mesmo tipo).

Mas O Tempo em Marte é diferente de seus outros livros por penetrar na mente das personagens. Por exemplo, há cenas que se repetem revelando o modo como pessoas diferentes perceberam. Está entre os livros mais humanos que já li do autor, junto com O Homem Duplo e Transmigração de Timothy Archer.

Resumindo, para fãs de Philip K. Dick ou de ficção científica mais doidona, é imperdível.

Espólio: significado do final

(Esta seção espolia totalmente a trama do livro. Caso pretenda lê-lo, não continue.)

Lembro de um comentário de Stephen King (no livro de não ficção Dança Macabra) sobre um antigo episódio de Star Trek. Por algum motivo, a nave Enterprise entra em modo warp, com os tripulantes em estase, e avança por bilhões de anos. Até que chegam no limite do Universo. Ali, há um tipo de barreira.

Com alguma manobra tecnológica, eles conseguem atravessar a fronteira. E do outro lado encontram apenas uma criança insana.

Lembrei dessa história3 ao terminar O Tempo em Marte. Evoca também o niilismo da famosa frase da peça de Shakespeare, Macbeth:

(A vida) é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada.

Mas o livro de Dick está sim repleto de significado. Indica em vários momentos que aquele mundo está sendo afetado pelo modo como Manfred, a criança autista, enxerga. Sua percepção acaba vazando para a "realidade", alterando-a. O esquizofrênico Jack Bohlen, e também Arnie Kott, percebem isso em seus surtos.

No final, quando Manfred já idoso volta no tempo para agradecer Jack por ter persistido em se comunicar com ele, sendo algo que beneficiou seu futuro, Jack informa que o "local" onde estão são essas memórias de infância de Manfred. Isso confirmaria que todo aquele mundo, de algum modo, é inseparável da mente de Manfred.

Foi o que entendi, em uma interpretação que se alinha com o conjunto da obra do autor. E adorei. Talvez seja a melhor história com viagem no tempo que já vi.4


  1. Sobre isso, vale ler a HQ A Experiência Religiosa de Philip K. Dick, desenhada pelo genial Robert Crumb, que narra um desses episódios. Está disponível online no Ovelha Elétrica, em português. 

  2. Apesar de essa crítica acertar algum ponto, vou defender Dick. A maioria de suas histórias não exige tanto aprofundamento em personagens. Seus protagonistas quase sempre são pessoas bem "normais", ajustadas (pelo menos em intenção), quadradas. Isso é proposital, já que o centro da trama é o choque dessa normalidade com alguma amplitude insólita. Talvez seria entediante demais mergulhar na intimidade mental dessas pessoas médias. Muitos já conhecemos bem isso porque somos mais ou menos assim. Então essa crítica sobre as personagens bidimensionais de Dick parece exalar também uma superficialidade ou até caretice, por ignorar a centralidade desse embate entre normalidade e caos, sanidade e loucura. 

  3. Pesquisei por esse episódio mas não encontrei. Provavelmente minha memória se bagunçou (deve ser na verdade um roteiro descartado pela produção), já que li Dança Macabra há uns 30 anos. 

  4. Sobre o problema da abordagem ficcional padrão para viagens no tempo: ‘Dark’ e a falácia da viagem no tempo‘Dark’ e a falácia da viagem no tempo
    Depois de abandonar a série Dark (Netflix, 2017~20), fiquei pensando em como é absurdo o conceito de viagem no tempo que costuma aparecer na ficção. Não que a série seja ruim. Tem qualidades excepcionais. Sou eu que não consigo aproveitar…