Princípios para assembleias de consenso

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Segue abaixo a reprodução de uma seção do livro Um Projeto de Democracia (The Democracy Project, 2013), de David Graeber. O livro é sobre a experiência do autor e ativista com a organização horizontal e descentralizada de movimentos como o Occupy Wall Street.

É a seção sobre assembleias de democracia direta, em que as pessoas deliberam e decidem elas mesmas os rumos coletivos. Nelas, as decisões são tomadas, idealmente, não por votação, mas por consenso geral. É comum imaginar a votação como um processo perfeitamente “democrático”. Mas, na democracia direta de movimentos descentralizados ou com inclinação anarquista1, a votação é a última medida, só quando tudo mais falha. Isso porque ela costuma excluir e anular a voz de minorias, implementando a chamada “tirania da maioria” — além de, no caso de eleições, o resultado ser o mesmo de uma pesquisa instantânea sobre opiniões desinformadas (que resultam de manipulação e desinformação).

A democracia direta é a origem da ideia contemporânea de democracia. Com os milênios e séculos, foi ficando cada vez menos direta e representativa, até chegar no fantoche atual, quase totalmente sequestrada pelos interesses de elites.

O texto é bastante prático e didático, ilustrando como lidar com os diversos obstáculos dessas assembleias na prática. Reproduzi apenas a seção sobre assembleias — no livro, o capítulo também trata de black blocs, desobediência civil e ação direta.

Para saber mais sobre assembleias cidadãs2, há esse guia, da newDemocracy Foundation e do Fundo das Nações Unidas para a Democracia.

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Como as mudanças acontecem

O último capítulo terminou com uma perspectiva filosófica de longo prazo; este pretende ser mais prático.

Seria impossível escrever um guia de como fazer revoltas não violentas, um Rules for Radicals3 (Regras para radicais) moderno. Se há uma regra que se aplica sempre à resistência civil, é o fato de não haver regras rígidas. Os movimentos funcionam melhor quando se adaptam melhor a cada situação em particular. O melhor processo democrático depende da natureza da comunidade envolvida, de suas tradições culturais e políticas, do número de pessoas que participam, do nível de experiência dos participantes e, é claro, do que eles estão tentando realizar, entre outros tantos interesses práticos imediatos. As táticas têm que permanecer flexíveis: se os movimentos não se reinventam constantemente, logo perdem força e morrem.

(longa desmistificação de black blocs)

… vou me concentrar em uma série de ideias e sugestões práticas, retiradas da minha experiência de uma década com organizações horizontais e também da experiência direta com o próprio Occupy.

Consenso

Há um grande debate sobre a possibilidade de o consenso ser usado em grupos maiores, e quando seria apropriado para grupos baseados em consenso voltar a usar a votação e com que propósito. Mas esses debates em geral são marcados por uma confusão quanto ao que o consenso de fato significa.

Muitas pessoas pressupõem, com alguma teimosia, que o processo de consenso é simplesmente um sistema de votação por unanimidade — e começam a debater se esse sistema “funciona”, presumivelmente em oposição a um sistema em que todas as decisões assumem a forma da votação por maioria. Ao menos do meu ponto de vista, esses debates perdem o foco. A essência do processo de consenso é apenas que todos devem ser capazes de opinar igualmente em uma decisão, e ninguém deve estar preso a uma decisão que abomine. Na prática, pode-se dizer que ele se resume a quatro princípios:

  • Todo aquele que acha que tem algo relevante a dizer sobre uma proposta deve ter suas perspectivas cuidadosamente consideradas;
  • Fortes preocupações ou objeções devem ser levadas em conta e, se possível, consideradas na versão final da proposta;
  • Qualquer pessoa que ache que uma proposta viola um princípio fundamental compartilhado pelo grupo deve ter a oportunidade de vetar (“bloquear”) a proposta;
  • Ninguém deve ser forçado a seguir uma decisão com a qual não concorde.

Ao longo dos anos, diferentes grupos e indivíduos desenvolveram sistemas de processo de consenso formal para garantir esses resultados. Eles podem ter diferentes formas, e não é preciso que haja necessariamente um processo formal, que às vezes é útil, às vezes não. Grupos menores muitas vezes podem operar sem nenhum procedimento formal.

Na verdade, há uma variedade infinita de formas que podem ser adotadas para a tomada de decisões no espírito desses quatro princípios. A questão, frequentemente em debate, sobre se o processo de análise de uma proposta deve ou não terminar em votação formal com as mãos ou outra afirmação de consenso é secundária. O que é fundamental é o processo que leva à decisão.

Terminar em votação tende a ser problemático não porque haja algo de intrinsecamente errado com o método de levantar as mãos, mas porque isso faz com que seja menos provável que todas as perspectivas sejam plenamente levadas em conta. Mas, se é criado um processo que termina em votação e ainda assim se permite que todas as perspectivas sejam consideradas de maneira satisfatória, então não há nada de errado com ele.

Deixe-me dar alguns exemplos práticos do que quero dizer. Para começar, um problema comum que grupos recém-formados precisam enfrentar é como escolher um processo de tomada de decisão. Pode parecer um pouco o impasse do ovo e da galinha: será que é preciso votar para decidir operar por consenso ou exigir consenso para que o grupo use a votação por maioria? Qual é o padrão?

Para descobrir, pode ser útil dar um passo atrás e pensar na própria natureza do grupo. Estamos acostumados a pensar em grupos como reuniões de pessoas com algum tipo de associação formal. Se você concorda em participar de um grupo que já tem um conjunto de regras — não importa se de um sindicato ou de uma liga amadora de softball —, você, pelo próprio ato de adesão, está concordando em se vincular a essas regras. Se for um grupo que opera por maioria de votos, isso significa que você concorda em se submeter às decisões da maioria. Se for um grupo vertical, com uma estrutura de liderança, você está concordando em fazer o que os líderes determinarem. Você ainda tem alguns recursos: se se opuser a uma decisão, pode sair ou se recusar a cumpri-la, o que pode até fazer com que o grupo reconsidere a decisão, mas o mais provável é que você seja penalizado de alguma maneira ou mesmo expulso. O que importa é que haverá algum tipo de sanção. O grupo pode impor um comportamento por meio da ameaça de punição.

Mas se estamos falando de uma reunião de ativistas ou de uma assembleia pública, diferentemente de um grupo composto por membros formais, nada disso se aplica. Em uma reunião pública, ninguém concordou com nenhuma regra preestabelecida. É apenas um grupo de pessoas sentadas em uma sala (ou de pé em uma praça pública). Não estão submetidas à decisão da maioria a menos que concordem em estar. E mesmo que concordem, se um participante posteriormente descobre que uma decisão é objetável a ponto de fazê-lo mudar de ideia, não há nada que o grupo possa fazer. Ninguém tem poderes para forçar o outro a fazer nada. E se é um grupo horizontal ou de inspiração anarquista, ninguém sequer desejaria ter poderes para isso.

Então, como esse grupo decide se quer operar por voto majoritário ou por alguma forma de consenso? Bem, primeiro, todos têm de entrar em um acordo. Se não houver acordo, então é justo dizer que “todos devem ter o mesmo direito de expressar sua opinião, e ninguém pode ser forçado a fazer algo a que se oponha veementemente”. Esse passa a ser o princípio geral de qualquer tomada de decisão.

Isso não quer dizer que jamais se deva fazer uma votação por maioria com as mãos. Um exemplo de aplicação óbvia é uma situação em que se precisa descobrir informações decisivas como: “Se realizássemos um evento às 13h na segunda-feira, quantos de vocês poderiam comparecer?” Da mesma forma, se há um assunto técnico em que parece claro que nenhum princípio está em questão (“Devemos adiar essa discussão por enquanto?” ou “Próxima reunião na terça ou na quarta?”), então o mediador pode simplesmente perguntar se todos estão de acordo em acatar a decisão da maioria sobre a questão e pronto.

O mais comum, porém, é que o mediador peça que as pessoas levantem as mãos apenas em casos de “pesquisa de opinião não vinculante” ou “pesquisa informal de opinião”, ou seja, apenas para ter uma noção de como as pessoas estão pensando. Isso pode ser feito com um simples levantar de mãos ou por um sistema mais sutil no qual se colocam as mãos para o alto para mostrar aprovação, para baixo, para desaprovação, e na horizontal para mostrar incerteza. Como não implicam nenhuma obrigatoriedade, esses testes podem dar todas as informações que se precisa saber. Se há um sentimento de forte oposição à proposta, a pessoa que a fez poderá retirá-la.

Para assuntos menos triviais, porém, os quatro princípios se tornam mais importantes. Então, como conseguir consenso em questões mais complexas? Existe um procedimento bastante padronizado com quatro passos, desenvolvido ao longo dos anos para garantir que as propostas pudessem ser continuamente remodeladas, em espírito de compromisso e criatividade, até atingirem um formato mais perto de ser favorável a todos. Não há nenhuma necessidade de ser religioso a respeito desse procedimento; há muitas variações possíveis. E é importante lembrar que, embora se presuma que as pessoas que comparecem a uma reunião concordam com os princípios básicos, elas não concordaram com nenhuma regra formal específica sobre procedimentos. Assim, os procedimentos devem se adaptar aos desejos do grupo. De modo geral, é mais ou menos assim:

1 – Alguém faz uma proposta de um plano de ação;

2 – O mediador pergunta se há dúvidas a serem esclarecidas para se certificar de que todos entenderam exatamente o que está sendo proposto;

3 – O mediador pergunta se alguém quer fazer alguma colocação:

  • a. Durante a discussão, quem tiver alguma colocação a fazer pode sugerir emendas amigáveis à proposta. A pessoa que originalmente trouxe a proposta pode aceitar as emendas ou não.
  • b. Pode-se fazer ou não uma pesquisa de opinião informal sobre a proposta, sobre uma determinada emenda ou sobre a seriedade de uma colocação.
  • c. No decorrer do processo, a proposta pode ser rejeitada, reformulada, combinada com outras, fragmentada ou adiada para discussão posterior.

4 – O mediador confere se há consenso:

  • a. perguntando se há abstenções. Ao se abster, a pessoa está dizendo: “Não gosto da ideia e não tomaria parte na ação, mas não quero impedir que outros o façam.” É sempre importante que as pessoas que se abstêm tenham a chance de explicar seus motivos.
  • b. perguntando se existem bloqueios. Um bloqueio não é um voto “não”. É mais parecido com um veto. Talvez a melhor maneira de entender o bloqueio seja pensar nele como algo que permite que qualquer pessoa do grupo vista temporariamente a toga de um juiz da Suprema Corte e derrube um texto legislativo que considere inconstitucional, ou, nesse caso, que esteja violando os princípios fundamentais de unidade ou o propósito de existência do grupo.4

Há várias maneiras de lidar com um bloqueio. A mais fácil é simplesmente retirar a proposta. O mediador pode encorajar o bloqueador a se encontrar com as pessoas que apresentaram a proposta, juntar-se ao grupo de trabalho competente, por exemplo, e ver se conseguem chegar a algum tipo de acordo razoável. Às vezes, especialmente se os outros acham que o bloqueio não se justifica (por exemplo: “Não acho que seja antissemita fazer a próxima reunião na sexta-feira, mesmo sendo um feriado judaico. Muitos de nós somos judeus e não nos importamos”),5 pode-se tentar algum tipo de processo para impugná-lo: por exemplo, perguntar se pelo menos dois outros membros do grupo querem mantê-lo (chamamos essas situações de “consenso menos um” ou “consenso menos dois”). Ou, se for um grupo grande, geralmente é uma boa ideia ter um feedback: se existe uma forte sensação de que a maioria das pessoas quer seguir adiante, independentemente de um bloqueio, pode-se recorrer a uma votação por maioria qualificada.

Durante a nossa primeira reunião para o Occupy Wall Street, em 2 de agosto, por exemplo, decidimos por uma versão de “consenso modificado”, de acordo com a qual poderíamos, em caso de impasse, recorrer ao critério de aprovação por uma maioria de dois terços. Mas mais tarde, poucos dias depois da ocupação, a assembleia geral concordou em aumentar a porcentagem para 90 por cento, com a justificativa de que, com o rápido crescimento do movimento, o sistema anterior permitiria a aprovação de propostas com a oposição de centenas ou mesmo milhares de participantes.

É importante não recorrer a esse recurso automaticamente: se alguém bloqueia, o mais provável é que tenha havido uma falha do processo, isto é, que uma colocação legítima tenha sido levantada e não considerada. Nesse caso, o melhor é que o grupo volte atrás e reconsidere a proposta. Mas, especialmente em um grupo muito grande, será preciso recorrer a expedientes como esses de vez em quando.

Existem algumas áreas do processo de consenso que podem causar problemas ou confusão. Vou tentar esclarecer aqui.

Uma delas é que não se pode basear um bloqueio no princípio da unidade do grupo a menos que o grupo realmente tenha um princípio de unidade. Por isso, é sempre aconselhável chegar a um acordo o mais rapidamente possível sobre por que o grupo existe e o que ele quer conseguir. É melhor que esses princípios sejam simples. Também é fundamental, ao formulá-los, lembrar que todo grupo ativista existe para fazer alguma coisa, para mudar o mundo de alguma maneira. Portanto, os princípios devem refletir tanto o que o grupo quer conseguir quanto os meios que utiliza para isso — e os dois, os fins e os meios, devem manter o maior grau possível de harmonia entre si. A escolha mais inteligente quando se trata de definir o grupo, porém, é realmente simplificar. É muito mais fácil dizer “Nós nos opomos a todas as formas de hierarquia social e opressão”, por exemplo, do que tentar listar todas as formas de hierarquia social e opressão que se acredita existir.

Uma vantagem de se ter um princípio de unidade é não apenas o fato de que ele pode esclarecer bloqueios, mas também possibilitar que participantes bem-intencionados, de tempos em tempos, lembrem aos demais por que estão ali. Isso pode ser incrivelmente útil na resolução de conflitos, uma vez que, em momentos mais acalorados, as pessoas têm a espantosa capacidade de esquecer o propósito inicial de estarem reunidas.

Isso nos leva a outro ponto: não há nada de errado com o conflito, desde que as pessoas se lembrem do motivo por que estão reunidas. Esse é mais um equívoco sobre o consenso: “Mas o conflito é a essência da política”, ouve-se com frequência. “Como vocês podem tentar eliminá-lo?” Obviamente, não é possível. E nem se deve tentar. Parte da confusão vem do fato de que, nos Estados Unidos, diferente de muitos outros lugares, os ativistas foram apresentados pela primeira vez a um consenso por meio da tradição quacre, ou seja, a primeira experiência de consenso está enraizada em suscetibilidades delicadas e, para falar a verdade, burguesas.

Espera-se que todos sejam, pelo menos superficialmente, extremamente agradáveis. Após o histrionismo macho man que tomou conta dos movimentos radicais no final dos anos 1960, quando pular em cadeiras e dar murros eram considerados comportamentos normais, o consenso inspirado nos quacres e no feminismo veio a ser um útil corretivo. Mas logo a desejada ênfase feminista na escuta mútua, no respeito e na comunicação não violenta começou a ser substituída pela ênfase, claramente de uma classe média alta que frequenta festas elegantes, em polidez e eufemismo, em evitar a todo custo qualquer demonstração de emoções desconfortáveis — o que é, a seu próprio modo, tão opressor quanto o velho estilo macho, especialmente para quem não faz parte dessa classe média alta.

Embora o estilo burguês não tenha sido esquecido, tem acontecido uma mudança em outra direção nos últimos anos. Os melhores mediadores, por exemplo, já perceberam que na realidade é muito melhor dizer: “Sim, somos pessoas intensas, estamos aqui porque nos importamos profundamente e temos emoções arrebatadas; demonstrações de raiva e frustração são tão importantes (e legítimas) quanto as de humor e amor. Em vez de tentar suprimir essas coisas, devemos compreender que, para que um grupo conquiste seus objetivos, os conflitos entre amigos e aliados devem ser incentivados, desde que todos se lembrem de que se trata de uma disputa entre pessoas que se gostam. Na prática, isso significa que, embora seja perfeitamente legítimo duvidar do discernimento das palavras ou dos atos do outro durante uma reunião, ou até mesmo expressar indignação diante disso, deve-se sempre dar ao outro o benefício da dúvida, acreditando em sua honestidade e suas boas intenções.

Isso pode ser extremamente difícil. Muitas vezes pode-se ter todas as razões para suspeitar que um interlocutor não está se comportando de maneira honesta nem bem-intencionada. Pode-se até suspeitar que seja um policial disfarçado. Mas pode ser um engano. E, assim como a maneira mais garantida de fazer as pessoas agirem como crianças é tratá-las como crianças, a maneira mais garantida de fazer com que comecem a se comportar de forma irresponsável durante uma reunião é tratá-las como irresponsáveis. Portanto, embora seja uma situação difícil, todos devem estar atentos a esse tipo de comportamento, e denunciar imediatamente quando for o caso. Não há problema em dizer a alguém que está sendo um idiota se você realmente acha isso. Mas não é legal dizer que uma pessoa está tentando intencionalmente destruir o movimento.

Se, por fim, essa pessoa realmente estiver tentando destruir o movimento de propósito, existem maneiras de lidar com isso. Se for de fato um policial, ou um nazista, ou alguém tentando impedir ativamente que o grupo atinja seus objetivos, ou ainda se for apenas um completo lunático, essa pessoa precisa ser neutralizada de alguma maneira, de preferência fora da reunião.

Um problema que tivemos em Nova York foi que, mesmo quando as pessoas declaravam abertamente que seu objetivo era atrapalhar a reunião, continuavam autorizadas a participar. Por fim descobrimos que a melhor maneira de lidar com essas pessoas era evitá-las: diante do que quer que dissessem ou fizessem, simplesmente não reagiríamos. Esse tipo de abordagem foi utilizado pela primeira vez, de forma espontânea, quando fazíamos uso do microfone humano: se alguém começava a dizer algo que os outros achavam ofensivo, todo mundo simplesmente parava de repetir, e, se o orador mantinha a linha ofensiva, acabava percebendo que ninguém conseguia ouvir o que tinha a dizer.

Sempre há limites, reconhecidos ou não. Se não são reconhecidos, ficam visíveis no momento em que alguém os ultrapassa. Assim como a “diversidade de táticas” se baseia no pressuposto tácito de que ninguém jamais iria aparecer em uma manifestação com um carro-bomba ou um lança-granadas, também a afirmação de que nenhum ativista deve ser expulso de uma reunião pressupõe determinados parâmetros.

Recentemente presenciei, em um conselho de porta-vozes em Nova York, um longo debate entre os presentes sobre estabelecer ou não um “acordo comunitário” e um princípio comum de que, se alguém violasse o acordo, deveria ser convidado a se retirar voluntariamente. Os participantes se opunham em coro à proposta, até que, de repente, alguém notou que um dos delegados tinha um cartaz que dizia “Grupo de Trabalho Identidade Ariana”. Ele foi então imediatamente cercado pelas pessoas — muitas das quais tinham acabado de dizer alto e bom som que a regra era opressora — e obrigado a sair.

*

Essa é apenas uma das várias ferramentas desenvolvidas ao longo dos anos por grupos de ativistas para possibilitar o funcionamento do processo de consenso. Existem muitas outras (os quebra-gelos, os círculos, a pipoca, o aquário6…). Existem materiais detalhados sobre como usá-los; podem ser encontrados facilmente na internet com uma simples busca no Google. Há guias de mediação e processo de consenso para todos os gostos, mas, pessoalmente, o meu favorito é o guia escrito pelo ativista Starhawk.7

Há também diferentes modelos de organização (assembleias gerais e conselhos de porta-vozes, por exemplo), cada um com seus méritos próprios. Não há uma única maneira certa, ou um roteiro para usar esses modelos em escala a fim de mobilizar toda a sociedade em bases diretamente democráticas.

A beleza do processo de consenso é o fato de ele ser variado e adaptável. Então, eis algumas considerações práticas e mal-entendidos comuns sobre os princípios básicos do consenso que, esperamos, vão ajudar aos leitores interessados em participar de um processo de descoberta dessas variações por si mesmos:

Perguntas e respostas sobre o consenso

P: Mas todo esse “processo de consenso” não é só uma manipulação de uma tácita ou encoberta panelinha de líderes?

R: Se você opera por consenso sem nenhuma regra, então, sim, inevitavelmente uma liderança tácita vai acabar surgindo — pelo menos tão logo o grupo ultrapasse os oito ou nove componentes. A escritora e ativista Jo Freeman apontou isso na década de 1970, durante os primeiros anos do movimento feminista. O que hoje chamamos de “processo de consenso” foi criado em grande parte para resolver esse problema, na esteira da crítica de Freeman.

O papel do mediador é um exemplo perfeito nesse sentido. A maneira mais fácil de saber que você está lidando com um processo corrompido é perceber se é a mesma pessoa que está: a) conduzindo a reunião e b) fazendo todas as propostas. Em qualquer grupo horizontal, tem que haver uma compreensão muito clara de que o mediador não apresenta propostas. Ele está ali apenas para ouvir e ser um intermediário que ajuda o grupo a pensar. Em geral, aliás, até mesmo o papel de mediador é dividido e repartido entre várias pessoas: uma para tocar a reunião de fato, outra para cuidar da lista de inscrições (de quem pede a palavra), outra para controlar o tempo e uma como observadora do ambiente, para garantir que o ânimo não baixe e que ninguém se sinta excluído. Tudo isso faz com que seja ainda mais difícil que um mediador manipule o debate, mesmo que inconscientemente. Também há rotatividade entre os mediadores, o que permite ao grupo manter o equilíbrio de gênero entre eles, assim como fazem com os oradores inscritos.

Isso não significa que não haverá panelinhas, especialmente em grupos muito grandes, ou que algumas pessoas não vão acabar tendo muito mais influência do que outras. A única solução de verdade para isso é o grupo ficar atento o tempo todo.

P: Mas se você está dizendo que tendem a surgir panelinhas mais influentes, simplesmente reconhecer o fato de que há realmente líderes e, portanto, criar uma estrutura de liderança formal não seria melhor do que ter uma liderança secreta que não pode ser responsabilizada e que ninguém reconhece abertamente?

R: Na verdade, não. As pessoas que atuam mais vão, é claro, ter mais influência. Isso dá certa vantagem àqueles que têm mais tempo para dedicar ao movimento. Inevitavelmente, alguns vão começar a coordenar juntos e isso quer dizer que terão acesso privilegiado à informação. O verdadeiro problema está aí. Em qualquer grupo igualitário, as informações tendem a ser um recurso limitado. Se ele acaba tendo uma hierarquia, é porque algumas pessoas têm meios de descobrir o que está acontecendo e outras não. Mas formalizar isso declarando os que têm acesso privilegiado às informações como “líderes” não vai melhorar o problema; ao contrário, só piora a situação.

O único modo de fazer com que essas pessoas não comecem a impor sua vontade aos demais, mesmo que sem querer, é criar mecanismos que garantam que a informação esteja disponível o mais amplamente possível, além de sempre lembrar aos membros mais ativos que não existe uma estrutura de liderança formal e que ninguém tem o direito de impor sua vontade.

Da mesma forma, criar um “comitê de coordenação” com os membros desse grupo de liderança informal, mesmo permitindo que todos decidam se eles devem continuar no comitê a cada seis meses ou mais, não faz deles pessoas “mais responsabilizáveis”, como muitas vezes se sugere (contrariando toda a experiência); na verdade, isso claramente os torna menos. Eu me pergunto por que alguém imaginaria o contrário.8

P: Admitamos que o consenso funcione bastante bem em grupos pequenos ou em bairros e em comunidades onde todos se conheçam. Mas como pode funcionar em um grupo grande de estranhos no qual não há nenhuma base inicial de confiança?

R: Não devemos romantizar a comunidade. É verdade que pessoas que viveram juntas a vida toda, digamos, em uma aldeia rural estão mais propensas a compartilhar perspectivas do que aquelas que vivem em uma grande metrópole impessoal, mas também é maior a probabilidade de que sejam inimigos mortais. O fato de que elas podem mesmo assim chegar a um consenso é um testemunho da capacidade dos seres humanos de vencer o ódio em nome do bem comum.

Quanto a reuniões entre estranhos: se alguém junta um grupo aleatório de pessoas na rua e as força a participar de uma reunião contra a sua vontade, provavelmente elas não serão capazes de encontrar uma base de entendimento comum (exceto na elaboração de um plano de fuga). Mas ninguém vai a uma reunião por livre e espontânea vontade a menos que queira alguma coisa com isso; todos têm algum objetivo comum que os fez estar ali. Se não se desvirtuam e têm sempre em mente o que os reuniu, de modo geral conseguem superar as diferenças.

P: Por que chamar “consenso modificado” o recurso a 66 por cento, 75 por cento, ou mesmo a 90 por cento dos votos nas reuniões maiores? Isso não é simplesmente um sistema de votação qualificada? Por que não podemos ser honestos e usar esse nome?

R: Não é de fato a mesma coisa. O que é fundamental para o consenso é o processo de síntese, é retrabalhar as propostas até o ponto em que o maior percentual possível de participantes goste dela, e o menor percentual possível tenha objeções. Às vezes, em grupos maiores, vê-se que, apesar desse esforço, alguém está disposto a bloquear, e haverá divergências básicas sobre o fato de o bloqueio ser uma expressão genuína dos princípios básicos do grupo. Nesse caso, tem-se a opção da votação. Mas, como qualquer um que tenha participado de uma reunião com base em, digamos, dois terços de votação pode atestar, quando se passa imediatamente para a votação, a dinâmica é diferente, porque não há o pressuposto de que a perspectiva de todos tem o mesmo valor. Nesse caso, qualquer pessoa cuja opinião represente menos de um terço dos membros da reunião pode ser simplesmente ignorada.

P: O que fazer se as pessoas abusarem do sistema?

R: Algumas pessoas, seja lá por que motivos, são desnorteadas ou perturbadas demais para participar de uma reunião democrática. Outras conseguem se encaixar, mas são tão difíceis e conflituosas que exigem uma atenção constante. Para satisfazê-las precisamos dedicar muito mais tempo a seus pensamentos e sentimentos do que ao restante do grupo, o que põe em xeque o princípio de igualdade. Se uma pessoa atrapalha a reunião o tempo todo, tem que haver uma maneira de pedir a ela que saia. Se ela se recusar, a providência seguinte é, em geral, procurar os amigos ou aliados dela para ajudar a convencê-la. Se isso não for possível, a melhor medida é tomar uma decisão coletiva de ignorá-la de maneira sistemática.

P: A insistência no consenso não engessa a criatividade e a individualidade? Ela não promove uma espécie de conformismo suave?

R: Sim, se for malfeito. Tudo pode ser malfeito. O processo de consenso é com frequência muito mal conduzido. Mas isso acontece principalmente porque vários de nós somos novos nisso. Estamos de fato criando uma cultura democrática a partir do zero. Mas quando bem-feito, não há nenhum outro processo mais favorável ao individualismo e à criatividade, porque ele se baseia no princípio de que não se deve nem mesmo tentar converter os outros inteiramente ao seu ponto de vista, e que nossa diferença é um bem comum que deve ser respeitado em vez de tomado como impedimento para a realização de objetivos comuns.

O verdadeiro problema aqui é quando o consenso é um processo de tomada de decisão por parte de grupos que já são baseados em desigualdades acentuadas de poder (reconhecidas ou não) ou que já têm uma cultura de conformismo. Para dar um exemplo extremo, é o modo como ele é praticado em empresas japonesas ou mesmo americanas, como a Harley-Davidson. Em casos como esses, não há dúvida de que exigir “consenso” pode tornar tudo ainda pior. Mas nem se trata realmente de consenso nos termos definidos aqui, e sim de uma unanimidade forçada. Não há maneira mais eficaz de destruir o potencial radical dos procedimentos democráticos do que forçar as pessoas a fingir que os estão usando, quando na verdade não estão.

P: Será que é razoável esperar que as pessoas participem regularmente de reuniões de 14 horas de duração?

R: Não, de forma nenhuma é razoável esperar isso. Obviamente, ninguém deve ser forçado — nem mesmo pela pressão moral — a participar de reuniões contra a sua vontade. Mas também não queremos nos dividir entre uma classe de dirigentes que têm tempo para participar de longas reuniões e outra de seguidores que nunca conseguem dar sua opinião sobre as decisões-chave. Em sociedades tradicionais que vêm praticando o consenso há séculos, a solução usual é tornar as reuniões divertidas: usar humor, música, poesia, para que as pessoas se divirtam ao assistir aos sutis jogos retóricos e aos dramas que os acompanham. Nesse sentido, novamente, Madagascar é meu exemplo favorito. O tipo de retórica implantada nas reuniões é tão apreciado no país que vi oradores particularmente qualificados usando-a fora das reuniões como forma de entretenimento nos intervalos de apresentações de bandas de rock em festivais de música.

Mas é claro que essas são sociedades nas quais a maioria das pessoas tem muito mais tempo disponível (sem contar que não têm TV nem redes sociais para distraí-los). Em um contexto urbano contemporâneo, a melhor solução, quando passa aquele momento de excitação inicial em que todo mundo está empolgado para participar, é simplesmente não ter reuniões de 14 horas. É preciso ser rigoroso com os limites de tempo: alocar dez minutos para determinado item de discussão, cinco para outro, e não mais de trinta segundos para cada orador. E lembrar sempre que não há necessidade de repetir o que outro já disse. Mas o mais importante é não levar propostas a um grupo maior a menos que haja uma ótima razão para isso. Isso é absolutamente essencial. Na verdade, é tão importante que vou fazer uma seção inteira a esse respeito.

Não submeta uma proposta para se chegar ao consenso a menos que haja uma ótima razão para isso

O processo de consenso só funciona se combinado com um princípio de descentralização radical.

Não consigo enfatizar esse ponto o bastante. Se há um lado bom na morosidade do processo formal de consenso, é precisamente o fato de que ele desencoraja as pessoas a levar propostas ante uma assembleia geral ou um conselho de porta-vozes ou outro grande grupo a não ser que seja realmente necessário. É sempre melhor, se possível, tomar decisões em pequenos grupos: grupos de trabalho, grupos de afinidade, coletivos. A iniciativa deve partir de baixo. Ninguém deve achar que precisa da autorização de outra pessoa, nem mesmo da assembleia geral (que é todo mundo), a menos que fazer isso possa prejudicar o processo de algum modo.

Deixe-me dar um exemplo.

Quando ainda nos reuníamos no Parque Tompkins Square, antes do início da ocupação em si, o grupo Divulgação quase desistiu em massa. Eles submeteram uma proposta de uma breve descrição da natureza e dos propósitos do grupo do Occupy Wall Street para ser utilizada nos folhetos que acabou sendo bloqueada na Assembleia Geral. A mulher na função de porta-voz do grupo mal conseguia disfarçar sua irritação, e finalmente me procurou, como suposto especialista no processo, para saber se eu poderia mediar. Pensei por um momento e perguntei:

— Bem, por que vocês trouxeram o texto para o grupo, afinal?

— Porque achei que seria melhor que todos aprovassem o modo como o grupo ia se descrever. Mas parece que qualquer que seja a linguagem que usemos, mesmo a mais minimalista, alguém se opõe. Elaboramos uma frase realmente sem nada que possa ser objetado!

— Tem certeza de que não estão se opondo ao próprio fato de vocês terem levado o texto para o grupo?

— Por que fariam isso?

— Bom, tudo bem, vamos pensar da seguinte forma: vocês são o grupo Divulgação. O grupo de trabalho recebeu da Assembleia Geral a atribuição de fazer a divulgação. Bem, acho que podemos argumentar: se vocês têm a atribuição de fazer a divulgação, têm também a atribuição de fazer o que é necessário para fazer a divulgação, como, digamos, apresentar uma maneira de descrever o grupo. Então, não acho que haja realmente nenhum motivo para pedir a aprovação do grupo, a menos que achem que há algo muito controverso que queiram verificar. Eu não estava lá; o texto era controverso?

— Não. Até achei que, se havia algum problema no texto, era o fato de estar bastante desinteressante.

Isso é o que acontece se você acha que precisa de aprovação para qualquer coisa.

Depois dessa conversa fui procurar a pessoa que tinha originalmente bloqueado o texto. Ele estava de pleno acordo com minha avaliação: havia bloqueado porque queria deixar claro que os grupos de trabalho deveriam decidir sozinhos assuntos daquela natureza. O principal problema, então, não era uma divergência sobre o processo; era apenas o fato de a pessoa que bloqueou não ter justificado sua ação.

*

Como regra geral: as decisões devem ser tomadas em menor escala, no nível mais baixo possível.9 Não peça aprovação mais geral a menos que haja uma necessidade imperiosa para isso.

Mas quando uma necessidade se torna imperiosa? Quais são os critérios para decidir quem deve e quem não deve ter a oportunidade de opinar sobre a questão?

Grande parte da história do pensamento radical — particularmente do pensamento democrático radical — depende exatamente dessa pergunta. Quem começa a tomar as decisões e por quê? A questão tem tomado a forma de um debate entre dois princípios: um é em geral chamado de auto-organização dos trabalhadores ou apenas controle dos trabalhadores; o outro pode ser chamado simplesmente de democracia direta.

No passado, o conceito de controle dos trabalhadores era aplicado, como o próprio nome sugere, para as mobilizações nos locais de trabalho, mas, como princípio básico, pode ser aplicado a qualquer contexto. Ele se resume à ideia de que todas as pessoas envolvidas ativamente em um determinado projeto devem ter igual direito a se pronunciar sobre o modo como o projeto é executado. Esse é o princípio, por exemplo, por trás do sistema de economia participativa (ou Parecon) proposto pelo teórico Michael Albert, tentando responder à pergunta “Que tipo de organização permite a existência de um local de trabalho genuinamente democrático?”. Sua resposta foi “balanced job complexes” (grupos de tarefas equilibrados), ou seja, organizações em que todas as pessoas desempenhariam trabalho tanto físico, quanto mental e administrativo.

Basicamente, o controle dos trabalhadores diz que todos devem ter o mesmo direito a opinar sobre a maneira como um projeto do qual estão participando será realizado.

O segundo princípio, o da democracia direta, estabelece que todos aqueles afetados por um projeto devem ter voz na forma como ele é conduzido. Obviamente, as implicações aqui são bem diferentes. Se essa noção fosse formalizada, levaria à formação de assembleias democráticas comunitárias para reunir as opiniões de todas as pessoas com participação no projeto. Mas as coisas não precisam ser tão formais. Em várias circunstâncias é até fundamental que não sejam. Em Madagascar, onde se tem operado por consenso por muito tempo, usa-se o que eles chamam de princípio de “fokon’olona”, que é difícil de traduzir, já que às vezes assume o significado de “assembleia pública” e às vezes, de “todo mundo”. Os colonos franceses tendiam a achar que a fokon’olona eram instituições políticas locais que poderiam ser transformadas em extensões de sua administração; mais tarde, governos madagascarenses tentaram por várias vezes fazer delas células de base para uma democracia local. Nunca funcionou. Em grande parte, porque não são órgãos formais, mas assembleias que se reúnem em torno de um problema específico — resolver um litígio, distribuir água para irrigação ou decidir sobre a construção de uma estrada —unindo todas as pessoas que possam ser afetadas pela decisão tomada.

Embora algumas pessoas tenham tentado apresentar a escolha entre os dois princípios — democracia direta e controle dos trabalhadores — como uma decisão difícil de ser tomada, uma sociedade verdadeiramente democrática provavelmente teria que recorrer a uma combinação de ambos. Por exemplo, não há razão para que toda a população cuja vida é de algum modo afetada por uma fábrica de papel localizada em alguma cidadezinha precise ou queira dar sua opinião sobre a política de férias dos operários; mas essa população tem todos os motivos para querer ser consultada sobre o que a fábrica está despejando no rio da cidade.

No caso de um grupo ativista, quando se faz uma pergunta desse gênero, o que de fato se quer saber são as funções dos grupos de trabalho. Todas as assembleias gerais do Occupy tiveram os seus. Em novembro de 2011, a assembleia geral da cidade de Nova York tinha mais de trinta. Alguns eram permanentes e estruturais: Meios de Comunicação, Mediação, Habitação, Contabilidade, Ação Direta. Outros eram permanentes e temáticos: Sistema Bancário Alternativo, Ecologia, Questões Transgênero. Outros foram ainda organizados em torno de ações ou campanhas específicas e podiam, portanto, ser permanentes ou temporários: Ocupação de Imóveis Desapropriados e Marcha de Solidariedade a Oakland, por exemplo. Os grupos de trabalho de ação tendem a ter seus próprios grupos de trabalho estruturais: Meios de Comunicação, Divulgação, Transporte e assim por diante.

Os grupos de trabalho são criados pela assembleia geral ou por um grupo maior para cumprir uma tarefa específica ou para realizar algum tipo de trabalho: pesquisa, educação etc. Às vezes se formam a partir de uma necessidade explícita (“Alguém está disposto a assumir a responsabilidade por questões de limpeza no acampamento?”); às vezes porque um grupo de pessoas tem uma ideia (“Queremos formar um grupo para pensar sobre como funcionariam os sistemas de limpeza em uma sociedade igualitária”).

A assembleia geral de Nova York segue o princípio de que qualquer pessoa que pretenda criar um grupo de trabalho precisa reunir pelo menos cinco membros iniciais e enviar uma solicitação a todo o grupo. Alguns pedidos foram bloqueados. É claro que todos são livres para se reunir em uma sala e discutir o que quiserem: o que a assembleia geral faz quando aprova um grupo de trabalho é dar a ele plenos poderes para agir em seu nome. É basicamente uma forma de delegação. Não cria hierarquias verticais porque os grupos de trabalho são abertos a qualquer um. Na verdade, dividir-se em grupos de trabalho durante o curso de uma reunião é uma forma de a assembleia geral ou a reunião de planejamento de ação fazer com que ninguém tenha influência em excesso, já que é fisicamente impossível participar de mais de um grupo ao mesmo tempo. Em princípio, mesmo os porta-vozes, que se voluntariam para ser a pessoa com quem entrar em contato se alguém quiser falar com os membros do grupo de trabalho, devem ser alternados de tempos em tempos.

No conselho de porta-vozes, em que apenas um porta-voz de cada grupo de trabalho pode tomar parte na discussão formal (os outros membros são incentivados a assistir e a sussurrar em seu ouvido, ou consultá-lo discretamente), ninguém pode falar pelo mesmo grupo duas vezes seguidas.

Depois que o trabalho é distribuído ou que um grupo recebe autorização para se dedicar a um projeto, com que frequência é preciso voltar a pedir a aprovação da assembleia? A regra geral deve ser: só quando for óbvio que seria errado não pedir. Se há alguma dúvida sobre a necessidade de aprovação, provavelmente ela não é necessária.


  1. A democracia direta está longe de ser unanimidade entre anarquistas. Alguns a rejeitam como sendo ainda uma estrutura hierárquica de poder. 

  2. Assembleias cidadãs também se guiam por consenso, mas as pessoas são reunidas por sorteio representativo. Já foram usadas em deliberações de governos na Europa e seus resultados costumam espelhar a opinião das sociedades de modo muito mais democrático e benéfico. 

  3. (Nota do editor do livro:) Rules for Radicals: A Pragmatic Primer for Realistic Radicals foi um livro escrito pelo organizador comunitário Saul D. Alinsky, publicado em 1971, pouco antes de sua morte. É uma espécie de guia para futuros organizadores de comunidades. 

  4. (Nota do autor:) Na linguagem do Occupy, um bloqueio tem que se basear em “uma colocação moral, ética ou relativa à segurança que seja tão forte que você consideraria deixar o movimento caso a proposta siga adiante”. (Nota do autor) 

  5. (N.A.:) Como o leitor deve suspeitar, o caso se refere a um incidente específico: um judeu ortodoxo recém-chegado a uma reunião da Rede de Ação Direta fez objeções a várias datas propostas para nosso encontro, alegando serem feriados judeus, o que irritou os demais — éramos apenas 12 pessoas ainda na sala, depois de uma longa reunião — e uma mulher negra indicou que estava inclinada a bloquear a proposta, alegando que manter a reunião naquela data seria discriminação religiosa. Por fim, alguém precisou explicar calmamente que ela era a única pessoa não judia na sala. 

  6. (N.E.:) icebreakers, go-rounds, popcorn e fishbowls. 

  7. The Empowerment Manual (2011). PDF livremente disponível

  8. (N.A.:) Na verdade, as razões remontam a um preconceito generalizado, com origem na teoria política liberal, contra qualquer coisa que possa parecer com um “poder arbitrário”. Por pelo menos um século, a justificativa predominante para o uso da força por parte do governo contra seus próprios cidadãos tem sido de que ela só é abusiva se não seguir regras explícitas, de conhecimento geral. A implicação disso é que qualquer forma de exercício do poder, até mesmo por influência, é censurável se não for formalmente reconhecida, e os poderes, expressos claramente. Por outro lado, o poder informal (mesmo que não violento) acabou sendo de alguma maneira considerado uma ameaça maior à liberdade humana do que a própria violência. Em última análise, é claro que tudo isso é uma espécie de utopia: é quase impossível haver regras claras e explícitas que englobem toda a ação política. 

  9. (N.A.:) Na União Europeia, esse princípio recebe o terrível nome de “subsidiariedade”. Que eu saiba, não há outra palavra para o conceito; ainda assim, não fui capaz de empregá-la.