Alguns poucos livros são mais do que literatura, são um grande acontecimento na vida. Sun House (2023), de David James Duncan, foi um dos três ou quatro em que senti isso.
É um épico de quase 800 páginas sobre como um punhado de pessoas nos EUA, enfrentando as diversas degenerações do mundo das últimas décadas, acabam convergindo em uma área natural no estado de Montana.
Ri muito com as cenas engenhosamente mirabolantes. Chorei não apenas com calamidades maiores ou menores, mas também em derretimento transcendente na religação com a essência da natureza que permeia a história — apesar de isso soar new age, passa longe.
Sim, é um livro intensamente espiritual, mas em embate frontal com instituições, dogmas e pregação, baseado mais em experiência direta da dimensão essencial perdida. Por exemplo, um dos personagens — um andarilho que solta um “the fuck!” a cada duas frases e passa o dia interagindo com pessoas aleatórias na rua — acaba inspirando o surgimento do “catolicismo da caçamba de lixo”, que reaviva a experiência das pessoas executadas ou excomungadas como hereges pela Igreja.
Todas as familiares referências espirituais no livro ressoaram bastante em mim — apesar de não escrever muito sobre aqui, a experiência mística laica é parte essencial de minha vida —, principalmente em como isso se conecta com a natureza e a atual policrise planetária.
Mas a espiritualidade de Sun House — que na verdade ocupa uns 30% das páginas — não eclipsa o restante, perpassa. Não falta romance (com paixões à primeira vista até), trauma familiar, amizade (com cachorro também), música e aventura natural.
No posfácio, David diz que levou 16 anos para escrever o livro:
Dezessete anos atrás, em um mundo no qual os problemas enfrentados pela humanidade e por todos os seres vivos haviam sobrecarregado nossa política e a sanidade de muitos políticos, passei a sentir que a situação mundial era tão sombriamente mítica, épica e avassaladora, que somente uma resposta coletivamente mítica e épica teria a chance de corrigir os inúmeros erros. No entanto, embora eu tenha visto inúmeros artigos de opinião pedindo uma mudança de consciência para que a humanidade sobreviva, não vi nenhuma descrição nesses artigos sobre como essa consciência se parece, sente, saboreia, soa e vive ao abordar realidades biológicas e espirituais inevitáveis, com o amor, compromisso com a verdade, e a justiça que elas exigem.
Apesar da imensidão do projeto, é isso o que ele conseguiu fazer com Sun House, seu terceiro romance, após dois cultuados best-sellers contraculturais — The River Why (1983) e The Brothers K (1992), que ainda não li.
A inventividade profusa me lembrou de escritores como Salman Rushdie e O Arco-Íris da Gravidade de Thomas Pynchon, com a vantagem de ser um autor cujas inclinações políticas, espirituais e culturais parecem perfeitamente alinhadas às minhas.
É daquelas obras em que saímos amando de coração as personagens, como se fizessem parte de nossa vida. Quase metade do livro mergulha nas histórias de cada uma e, aos poucos, todas vão se entrelaçando.
Perto do final, é revelado o que é a tal “Casa Sol” do título, em uma das mais vividamente arrebatadoras mitologias panteístas naturais que já vi. O final em si é épico a ponto de levar consigo para o túmulo.
Caso leia em inglês e se interesse por natureza, utopia, busca por sentido e espiritualidade sem assombração e instituição, tudo amarrado em uma história muito bem contada, Sun House é o livro.
Entrevista na Emergence Magazine que me levou ao livro.
(Usei no título a palavra “cosmo” no sentido de beleza da existência. Curiosidade: beleza e harmonia fazem parte do significado de “cosmos” — “cosmético” tem a mesma raiz. Pitágoras é considerado o primeiro a usar o termo assim.)