Entrevista de Alan Moore sobre anarquismo

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capa do livro “Mytmakers & Lawbreakers”, com a ilustração de uma pessoa colando cartazes na rua

Segue uma entrevista sobre anarquismo e ficção com o lendário autor inglês de graphic novels e romances Alan Moore. O “bruxo” influenciou-me profundamente desde a adolescência — com as histórias em quadrinhos (adultas) V de Vingança, Watchmen e Monstro do Pântano — até hoje.

A conversa foi publicada originalmente no livro Mythmakers & Lawbreakers: Anarchist Writers on Fiction (2009), que reúne entrevistas com pessoas autoras de ficção que são anarquistas, feitas por outra escritora anarquista, Margaret Killjoy.

O livro não especifica quando cada entrevista foi feita, apenas o período total entre 1982 e 2009. A entrevista com Alan Moore parece ser de 2005, devido à menção ao filme V de Vingança como algo novo, e à ideia de que a internet poderia ser subversiva, conforme acreditávamos na época.


foto do autor Alan Moore, branco, cerca de 60 anos, com cabelos e barba grisalhas longas, sol ao fundo

Entrevista publicada no livro “Mythmakers & Lawbreakers” (2009), de Margaret Killjoy.

Ouvi falar de Alan Moore pela primeira vez como o autor de V de Vingança, uma graphic novel que coloca um herói anarquista contra um governo britânico tirânico. Depois, ouvi falar mais e mais sobre ele. Ele transformou o Monstro do Pântano, da D.C. Comics, em um guerreiro ecológico. Escreveu Watchmen, muitas vezes considerada a melhor graphic novel já escrita. Fez renascer o steampunk com A Liga Extraordinária. A propósito, ele também não se conforma com os filmes que foram filmados de suas obras (Do Inferno, V de Vingança, A Liga Extraordinária). Mas, como a maior parte de seu trabalho na juventude foi para grandes editoras de quadrinhos, ele é dono de muito pouco do seu próprio trabalho.

Uma pessoa conhecida me passou seu número de telefone, e eu liguei para sua casa na Grã-Bretanha. Ele falou de forma eloquente sobre política, história e o impacto da ficção em nossas vidas.


MK: Vou começar com o básico: quais são suas associações com o anarquismo? Você se considera um anarquista? Como você se envolveu pela primeira vez na política radical?

AM: Bem, acho que comecei a me envolver com a política radical como algo natural, no final dos anos 1960, quando ela fazia parte da cultura. A contracultura, como a chamávamos na época, era muito eclética e abrangente. Incluía modas de roupa, estilos de música, posições filosóficas e, inevitavelmente, posições políticas. E, embora houvesse várias inclinações políticas entrando em voga de tempos em tempos, suponho que o ponto de vista político geral consensual era provavelmente anarquista. Embora, provavelmente, naquela época, quando eu era um adolescente muito jovem, eu não colocasse as coisas nesses termos. Provavelmente não estava familiarizado o suficiente com os conceitos de anarquia para realmente me rotular como tal. Foi mais tarde, quando entrei na casa dos vinte anos e comecei a pensar mais seriamente sobre as coisas, que cheguei à conclusão de que basicamente o único ponto de vista político ao qual eu poderia aderir seria um anarquista.

Além disso, ocorreu-me que, basicamente, a anarquia é de fato a única posição política realmente possível. Acredito que todos os outros estados políticos são, na verdade, variações ou decorrências de um estado básico de anarquia; afinal, quando você menciona a ideia de anarquia para a maioria das pessoas, elas lhe dirão o quanto isso é uma má ideia porque a maior gangue simplesmente tomaria o controle. É mais ou menos assim que vejo a sociedade contemporânea. Vivemos em uma situação anarquista mal desenvolvida, na qual a maior gangue assumiu o controle e declarou que não se trata de uma situação anarquista — que seria uma situação capitalista ou comunista. Mas tenho a tendência de pensar que a anarquia é a forma mais natural de política a ser praticada por um ser humano. Tudo o que a palavra significa é “sem líderes”. An-archon. Sem líderes.

E acho que se de fato observarmos a natureza sem preconceitos, descobriremos que esse é o estado de coisas que geralmente ocorre. Quero dizer, naturalistas anteriores observaram grupos de animais e disseram: “ah, sim, esse animal é o macho alfa, portanto, ele é o líder do grupo”. Já pesquisas posteriores tendem a sugerir que isso é simplesmente o pesquisador projetando suas próprias visões sociais em um grupo de animais e que, se você observá-los mais de perto, descobrirá que, sim, há um macho grande e forte que parece lidar com a maioria das brigas, mas que o membro mais importante do rebanho é provavelmente essa fêmea na parte de trás, em torno da qual todos parecem se reunir durante qualquer conflito. Há outros animais no rebanho que podem ter importância em termos de encontrar um novo território. Na verdade, o grupo não se estrutura em termos de hierarquias; cada animal parece ter sua própria posição dentro do grupo.

E, na verdade, se você observar a maioria dos agrupamentos humanos naturais de pessoas, como uma família ou um grupo de amigos, verá que, mais uma vez, não temos líderes. A menos que você esteja falando de uma família vitoriana incrivelmente rígida, não há ninguém que possa ser considerado o líder da família; todos têm sua própria função. E me parece que a anarquia é o estado mais natural quando se trata de seres humanos comuns vivendo suas vidas de forma natural. É somente quando há essas estruturas de ordem bastante estranhas, representadas por nossas principais escolas de pensamento político, que começam a surgir esses problemas terríveis — problemas relativos ao nosso status dentro da hierarquia, às incertezas e inseguranças que resultam disso. Surgem esses ciúmes, essas lutas pelo poder que, em geral, não afligem o resto do reino animal. Parece-me que a ideia de líderes não é natural e provavelmente foi fabricada por um líder em algum momento da antiguidade; os líderes vêm impondo brutalmente essa ideia desde então, a ponto de a maioria das pessoas não conseguir conceber uma alternativa.

Essa é uma das questões sobre a anarquia: se amanhã tirássemos todos os líderes e os colocássemos contra a parede e os fuzilássemos — e esse é um pensamento adorável, portanto, deixe-me permanecer nele por um momento antes de descartá-lo —, mas se fizéssemos isso, a sociedade provavelmente entraria em colapso, porque a maioria das pessoas vem de milhares de anos de condicionamento para que dependam da liderança de uma fonte externa a elas. Isso se tornou uma muleta para um grande número de pessoas e, se você simplesmente a chutasse longe, essas pessoas simplesmente cairiam e levariam a sociedade junto. Para que qualquer estado de anarquia viável e realista seja alcançado, você obviamente terá que educar as pessoas — e educá-las massivamente — para um estado em que elas possam realmente assumir a responsabilidade por suas próprias ações e, ao mesmo tempo, estar cientes de que estão agindo em um grupo mais amplo: que devem permitir que outras pessoas dentro desse grupo assumam a responsabilidade por suas próprias ações. O que, em pequena escala — como funciona em famílias ou em grupos de amigos — não parece ser tão implausível, mas seria necessária muita educação para fazer com que as pessoas pensem em viver suas vidas dessa maneira. E, obviamente, nenhum governo, nenhum estado, jamais educará as pessoas a ponto de o próprio estado se tornar irrelevante. Portanto, se as pessoas forem educadas a ponto de assumirem a responsabilidade por suas próprias leis e ações e se tornarem, a meu ver, seres humanos plenamente realizados, isso terá de vir de alguma fonte que não seja o Estado ou o governo.

Já houve tradições subterrâneas (“underground”), tanto tradições políticas subterrâneas quanto tradições espirituais subterrâneas. Houve pessoas como John Bunyan, que passou quase 30 anos na prisão em Bedford, perto daqui. Esse é o autor de The Pilgrim's Progress que passou quase 30 anos na prisão porque as ideias espirituais que ele defendia eram muito incendiárias. Isso fazia parte de um movimento; por volta do século 17, na Inglaterra, havia todo tipo de ideias estranhas que vinham à tona, principalmente na região onde moro, nas Terras Médias. Havia todas essas religiões — embora muitas vezes fossem consideradas heréticas — que afirmavam que não havia necessidade de sacerdotes, que não havia necessidade de líderes; elas esperavam anunciar uma nação de santos, que todo mundo se tornaria santa e que elas se tornariam filósofas mecanicistas. As pessoas poderiam trabalhar o dia todo, como, por exemplo, um funileiro, mas à noite poderiam se erguer e pregar a palavra do Senhor com tanta autoridade quanto qualquer pessoa em um púlpito. Essa parece ser uma ideia gloriosa, mas você pode ver como ela teria aterrorizado as autoridades da época.

E, de fato, foi durante o século 17 que, em parte alimentado por ideias semelhantes, Oliver Cromwell se ergueu e deu início à guerra civil britânica, que acabou levando à decapitação de Carlos I. Quero dizer que foi, na frase de um dos melhores livros sobre o período, “literalmente um caso em que o mundo virou de cabeça para baixo”. Existem essas tradições subterrâneas, sejam elas espirituais ou puramente políticas, que expressam ideias anarquistas há séculos, e hoje em dia há ainda mais potencial para a disseminação de ideias como essas. Com o crescimento da internet e o crescimento da comunicação em geral, é muito mais difícil suprimir essas ideias. Simplesmente colocar John Bunyan na cadeia por 30 anos não é mais suficiente. Além disso, a internet sugere possibilidades de se livrar do controle centralizado do Estado.

Houve um artigo muito interessante, uma transmissão televisiva de 10 minutos, feita aqui por um senhor da London School of Economics, um palestrante que parecia ser o homem menos ameaçador que você pode imaginar. Ele não parecia, de forma alguma, um político apocalíptico; parecia e era um contador e economista. No entanto, o quadro que ele estava pintando era bastante convincente. Ele estava dizendo que a única razão pela qual os governos são governos é que eles controlam a moeda; na verdade, eles não fazem nada por nós que não paguemos, a não ser nos expor à ameaça de guerras no exterior por meio de suas ações imprudentes. Na verdade, eles nem sequer nos governam; tudo o que fazem é controlar a moeda e arrecadar os lucros.

Agora, no passado, se você quisesse ir para a cadeia para sempre, a melhor maneira de fazer isso não seria molestar crianças, ou sair em uma onda de assassinatos em série ou algo parecido, a melhor maneira teria sido tentar estabelecer sua própria moeda. Porque a natureza da moeda é um tipo de mágica: essas peças de metal ou de papel só têm valor enquanto as pessoas acreditarem que elas têm. Se alguém introduzisse outro tipo de peça de metal ou de papel e se as pessoas começassem a acreditar mais nessa forma de moeda do que na sua, toda a sua riqueza desapareceria de repente. Portanto, as tentativas de introduzir moedas alternativas no passado foram impiedosamente eliminadas. E, com a internet, isso não é mais tão fácil, nem de longe. De fato, muitas empresas modernas têm esquemas de recompensas; os supermercados têm esquemas de recompensas que, em certo sentido, são como uma forma de moeda. Muitas empresas têm esquemas nos quais os funcionários são pagos em créditos que podem ser trocados por quase tudo, desde uma casa até uma lata de feijão na loja da empresa. Há também economias verdes que estão surgindo aqui e ali, por meio das quais você terá, digamos, um lugar desprivilegiado na Inglaterra onde há um mecânico desempregado que quer decorar sua casa. Ele, como mecânico desempregado, terá acumulado créditos verdes ao fazer trabalhos específicos na vizinhança — consertar carros de pessoas, coisas assim — e poderá gastar esses créditos entrando em contato com um decorador desempregado que virá e pintará sua casa para ele.

Mais uma vez, esquemas como esse são cada vez mais difíceis de controlar, e o que esse professor da London School of Economics estava dizendo é que, no futuro, teríamos de estar preparados para uma situação em que, em primeiro lugar, não teríamos moeda e, em segundo lugar, como resultado disso, não teríamos governo. Portanto, há maneiras pelas quais a própria tecnologia e as maneiras pelas quais respondemos à tecnologia — as maneiras pelas quais adaptamos nossa cultura e nosso modo de vida para acomodar os avanços e movimentos tecnológicos — podem nos dar uma maneira de contornar o governo. Evoluir em torno do governo até um ponto em que ele não seja mais necessário ou desejável. Talvez essa seja uma visão otimista, mas é uma das únicas maneiras realistas de ver isso acontecer.

Não acredito que uma revolução violenta vá funcionar, simplesmente pelo fato de que nunca funcionou no passado. Falando como morador de Northampton, durante a guerra civil inglesa, apoiamos Cromwell — fornecemos todas as botas para seu exército — e éramos um centro de aspirações anti-monarquia. Aliás, também fornecemos todas as botas para os confederados, portanto, obviamente, sabemos como escolher um vencedor. A revolução de Cromwell? Acho que foi bem-sucedida. O rei foi decapitado, sendo algo bem cedo em termos de decapitação — entre as monarquias europeias, acho que podemos afirmar que demos o pontapé inicial nessa tendência. Mas espere mais dez anos; como se viu, o próprio Cromwell foi um monstro. Ele foi o mesmo monstro que Carlos I havia sido. Em alguns aspectos, foi pior. Quando Cromwell morreu, a restauração aconteceu. Carlos II chegou ao poder e ficou tão irritado com o povo de Northampton que derrubou nosso castelo. E o status quo foi restaurado. De fato, não acho que uma revolução violenta vá oferecer uma solução de longo prazo para os problemas das pessoas comuns. Acho que é melhor resolvermos isso por nós mesmos e que provavelmente conseguiremos com a simples evolução da sociedade ocidental. Mas isso pode levar um bom tempo, e se temos ou não esse tempo é, obviamente, discutível.

Portanto, suponho que esses sejam meus principais pensamentos sobre a anarquia. Elas estão comigo há muito tempo. No início dos anos 80, quando comecei a escrever V de Vingança para a revista inglesa Warrior, a história foi resultado de eu realmente sentar e pensar sobre quais eram os verdadeiros polos extremos da política. Porque percebi que a simples dupla capitalismo e comunismo não era os dois polos em torno dos quais girava todo o pensamento político. Percebi que dois extremos muito mais representativos se encontravam no fascismo e anarquia.

O fascismo é uma abdicação completa da responsabilidade pessoal. Você está entregando toda a responsabilidade por suas próprias ações ao Estado, acreditando que na unidade há força, que era a definição do fascismo representada pelo símbolo romano original do feixe de galhos amarrados. Sim, é um argumento muito persuasivo: “Na união há força”. Mas, inevitavelmente, as pessoas tendem a chegar à conclusão de que o feixe de galhos amarrados será muito mais forte se todos os galhos forem de tamanho e forma uniformes, se não houver nenhum galho com formato estranho ou torto que esteja atrapalhando o feixe. Assim, de “na unidade há força” passa-se a “na uniformidade há força” e, daí, prossegue-se para os excessos do fascismo, como os vimos sendo exercidos ao longo do século XX e no século XXI.

A anarquia, por outro lado, está quase partindo do princípio de que “na diversidade há força”, o que faz muito mais sentido do ponto de vista da observação do mundo natural. A natureza e as forças da evolução — se você estiver vivendo em um país onde ainda se acredita nas forças da evolução, é claro — não acharam adequado seguir a ideia de que “na unidade e na uniformidade há força”. Se quisermos falar de espécies bem-sucedidas, então estamos falando de morcegos e besouros; há milhares de variedades diferentes de morcegos e besouros. Certos tipos de árvores e arbustos se diversificaram de forma tão esplêndida que agora existem milhares de exemplos diferentes dessa espécie básica. Agora você compara isso com algo como cavalos ou humanos, em que há um tipo básico de humano e dois ou três tipos básicos de cavalos. Em termos de árvore evolutiva, somos galhos muito nus e despidos. Todo o programa de evolução parece ser a diversificação, pois a diversidade é a força.

E se aplicarmos isso em um nível social, teremos algo como a anarquia. Todos são reconhecidos como tendo suas próprias habilidades, suas próprias agendas particulares, e todos têm sua própria necessidade de trabalhar em cooperação com outras pessoas. Portanto, é concebível que o mesmo tipo de circunstância que ocorre em um pequeno grupo humano, como uma família ou um grupo de amigos, possa ocorrer em um grupo humano mais amplo, como uma civilização.

Portanto, suponho que esses sejam basicamente meus pensamentos no momento sobre a anarquia. Embora, é claro, a anarquia seja um bem bastante mutável, portanto, se você me perguntar amanhã, talvez eu tenha uma ideia diferente.

MK: Ao “escrever histórias em quadrinhos”, você escreve sobre como as histórias podem ter relevância para o mundo ao nosso redor, como as histórias podem ser “úteis” de alguma forma. Como você acha que as histórias podem ser úteis? E como a política influencia seu trabalho?

AM: Bem, acho que as histórias são provavelmente mais do que apenas úteis; elas são provavelmente vitais. Acho que se examinarmos a relação entre a vida real e a ficção, descobriremos que, na maioria das vezes, baseamos nossa vida real em ficções que aplicamos de algum lugar. Desde nossos primeiros dias nas cavernas, tenho certeza de que, ao montarmos nossas próprias personalidades, tentamos pegar qualidades emprestadas — talvez de pessoas reais que admiramos, mas, na maioria das vezes, de alguma pessoa completamente mítica, alguma divindade ou herói, alguma personagem de um livro de histórias. Independentemente de ser uma boa ideia ou não, isso tende a ser o que fazemos. A maneira como falamos, a maneira como agimos, a maneira como nos comportamos, provavelmente estamos tomando nosso exemplo de alguma ficção ou protótipo. Mesmo que seja uma pessoa real que esteja nos inspirando, pode ser que ela tenha se inspirado parcialmente em exemplos fictícios. E, diante disso, é muito fácil perceber que, de certa forma, toda a nossa vida — individualmente ou como cultura — é um tipo de narrativa.

É um tipo de ficção, não é uma realidade no sentido de ser algo concreto e fixo; nós constantemente ficcionalizamos nossa própria experiência. Nós editamos nossa própria experiência. Há partes dela das quais simplesmente nos lembramos mal e há partes que editamos deliberadamente porque não são de nosso interesse, ou porque talvez nos mostrem sob uma luz ruim. Portanto, estamos constantemente revisando nosso próprio passado, tanto como indivíduos quanto como nações. Estamos transformando-o momento a momento em uma espécie de ficção, que é a maneira como montamos nossa realidade diária. Não estamos vivenciando a realidade diretamente, estamos simplesmente vivenciando nossa percepção da realidade. Todos esses sinais que pulsam nos nervos ópticos e nos tímpanos de nossos ouvidos compõem, momento a momento, nossa visão da realidade. E, inevitavelmente, como as percepções das pessoas são diferentes e as construções que as pessoas fazem das coisas são diferentes, então não existe uma realidade fria e objetiva que seja sólida e fixa e não esteja aberta a interpretações. Inevitavelmente, estamos, até certo ponto, criando uma ficção a cada segundo de nossas vidas, a ficção de quem somos, a ficção do que é a nossa vida, os significados que damos às coisas.

Portanto, até certo ponto, as histórias estão no centro absoluto da existência humana. Às vezes, com efeitos desastrosos; se pensarmos em como várias histórias religiosas antigas — que podem ter sido concebidas na época apenas como fábulas — levaram a tantas guerras devastadoras até os dias de hoje, inclusive. Obviamente, há algumas ocasiões em que as ficções nas quais baseamos nossas vidas nos levam a um território aterrorizante. Então, sim, acho que as histórias têm um grande papel a desempenhar, de certa forma mais do que o desenvolvimento de leis ou o desenvolvimento de qualquer outro tipo de marcador sociológico. Acho que é o desenvolvimento de nossas ficções e o desenvolvimento de nossas histórias que tendem a ser a verdadeira medida de nosso progresso. Costumo pensar que, quando fazemos uma retrospectiva da cultura, geralmente estamos olhando para a arte como a medida dos pontos altos de nossa cultura. Não estamos olhando para a guerra ou para os principais eventos políticos benignos. Em geral, estamos analisando os pontos altos da cultura, como uma história.

Quanto ao modo como a política se relaciona com o processo de contar histórias, eu diria que provavelmente é da mesma forma que a política se relaciona com tudo. Quero dizer, como dizia a velha máxima feminista, “o pessoal é o político”. Na verdade, não vivemos em uma existência em que os diferentes aspectos de nossa sociedade sejam compartimentados da mesma forma que nas livrarias. Em uma livraria, há uma seção de história, uma seção de política, uma seção de vida contemporânea, uma seção de meio ambiente, uma seção de pensamento moderno, uma seção de atitudes modernas. Todas essas coisas são políticas. Todas essas coisas não são compartimentadas; elas estão todas misturadas. E acho que, inevitavelmente, haverá um elemento político em tudo o que fazemos ou deixamos de fazer. Em tudo o que acreditamos ou deixamos de acreditar.

Quero dizer, em termos de política, acho que é importante lembrar o que a palavra realmente significa. A política às vezes se vende como tendo uma dimensão ética, como se houvesse uma política boa e uma política ruim. Pelo que sei, a palavra tem a mesma raiz que a palavra “educado” (“polite”). É a arte de transmitir informações de forma política, de uma maneira que seja discreta e diplomática e que ofenda o mínimo de pessoas. E basicamente estamos falando de “spin“ [divulgação para manipular]. Em vez de ser um termo puramente do final do século XX e início do século XXI, é óbvio que a política sempre foi nada mais do que spin. Mas, dito isso, (a política) é o sistema que está entrelaçado com nossas vidas cotidianas, portanto, todos os aspectos de nossas vidas estão fadados a ter um elemento político, inclusive escrever ficção.

Suponho que qualquer forma de arte possa ser considerada propaganda (política) de um estado de espírito. Inevitavelmente, se você está criando uma pintura ou escrevendo uma história, está fazendo propaganda, de certa forma, da maneira como se sente, da maneira como pensa, da maneira como vê o mundo. Você está tentando expressar sua própria visão da realidade e da existência, e isso inevitavelmente será uma ação política — especialmente se sua visão da existência estiver muito distante da visão convencional da existência. Foi assim que muitos escritores se meteram em problemas terríveis no passado.

MK: Você teve algum problema com suas editoras, devido à sua política radical?

AM: Bem, não, surpreendentemente. Em grande parte, comecei a trabalhar com quadrinhos sob a influência dos quadrinhos underground americanos; provavelmente, essa foi a minha origem, uma espécie de adulação da cultura underground americana, incluindo suas histórias em quadrinhos. Esse cenário sempre foi muito, muito político. Portanto, desde o início, provavelmente sempre houve algum elemento politicamente satírico, pelo menos de vez em quando. Quando era necessário, ou parecia certo para a história, havia algum elemento político satírico que se infiltrava em meu trabalho, desde os primeiros dias. Muitos dos primeiros contos curtos que fiz para a 2000 AD, pequenos contos de ficção científica com finais tortuosos. Quando era possível, eu tentava inserir algum tipo de moral política, ou simplesmente moral, em histórias como essas. Simplesmente porque isso as tornava melhores e me fazia sentir melhor ao escrevê-las, porque eu estava expressando minhas próprias crenças.

Agora, como essas histórias eram populares, porque vendiam mais quadrinhos, nunca tive nenhum problema. Mesmo que as pessoas que publicavam os livros não compartilhassem de minhas crenças ou políticas — e, na maioria dos casos, sua política seria 180 graus diferentes das minhas —, elas pelo menos entendiam seus próprios números de vendas. E eles pareciam ser capazes de conviver com isso, com a publicação de pontos de vista que eles mesmos não aceitavam, desde que os leitores estivessem comprando os livros em grande quantidade. Eles estão preparados para perdoar qualquer coisa se você estiver ganhando dinheiro suficiente para eles. Acho que essa é a mensagem geral que recebi da minha carreira nos quadrinhos: se você for bom o bastante, se for popular o bastante, se estiver ganhando dinheiro o bastante, eles permitirão que você use as instalações editoriais deles para disseminar ideias que talvez sejam muito, muito radicais. Talvez até mesmo, em alguns contextos, potencialmente perigosas. Essa é a beleza do capitalismo: há uma ganância inerente que está mais preocupada em ganhar dinheiro do que em qualquer mensagem que possa estar circulando. Portanto, não, eu nunca tive problemas com isso.

MK: Você pode apontar algum efeito que suas histórias tiveram no mundo?

AM: Não consigo pensar em muitos efeitos positivos. Gostaria de pensar que alguns de meus trabalhos abriram o pensamento das pessoas sobre determinadas áreas. Em um nível muito primitivo, seria bom pensar que as pessoas pensaram de forma um pouco diferente sobre a mídia dos quadrinhos como resultado do meu trabalho e viram nela mais possibilidades. E percebessem que era uma ferramenta útil para a disseminação de informações. Isso seria uma conquista. Isso teria acrescentado um implemento muito útil ao arsenal de pessoas que buscam mudanças sociais, porque os quadrinhos podem ser uma ferramenta incrivelmente útil nesse sentido. Também gostaria de pensar que talvez, em um nível mais elevado, alguns dos meus trabalhos tenham o potencial de mudar radicalmente as ideias de um número suficiente de pessoas sobre um assunto. Para talvez, eventualmente, décadas após minha morte, afetar algum tipo de mudança menor na maneira como as pessoas veem e organizam a sociedade. Parte do trabalho com magia que realizei é uma tentativa de fazer com que as pessoas vejam a realidade e suas possibilidades sob uma luz diferente. Eu gostaria de pensar que isso poderia ter algum tipo de impacto eventualmente. Gostaria de pensar que Lost Girls, com sua tentativa de reabilitar toda a noção de pornografia, pode ter alguns efeitos benignos. Que as pessoas poderão potencialmente criar uma forma de pornografia que não seja feia, que seja inteligente e que potencialmente transforme a pornografia em um tipo de arena bonita e acolhedora, na qual nossos segredos sexuais mais bem guardados possam ser discutidos de forma aberta e saudável. Onde nossas fantasias vergonhosas não são deixadas para infeccionar e se transformar em algo monstruoso no escuro dentro de nós. Seria bom pensar que talvez coisas como Lost Girls e o material sobre magia possam ter o potencial de realmente mudar a maneira como as pessoas pensam.

Com relação à magia, lembro-me de uma das últimas conversas que tive com minha querida e saudosa amiga, a escritora Kathy Acker. Isso foi logo depois de eu ter me interessado e me envolvido com magia. Eu estava dizendo a ela que a maneira como eu estava vendo as coisas era que, basicamente, a magia era o último e melhor bastião da revolução. A revolução política, a revolução sexual, essas coisas tinham seu papel e seus limites, ao passo que a ideia de uma revolução mágica giraria em torno de mudar a consciência das pessoas, ou seja, mudar a natureza da realidade percebida. Kathy concordou plenamente com isso — isso meio que seguiu algumas de suas próprias experiências — e ainda acho que isso é verdade. De certa forma, a magia é a mais política de todas as áreas em que estou envolvido.

Por exemplo, estávamos falando anteriormente — bem, eu estava falando anteriormente — sobre a anarquia e o fascismo como os dois polos da política. Por um lado, temos o fascismo, com o feixe de galhos amarrados, a ideia de que na unidade e uniformidade há força; por outro lado, temos a anarquia, que é completamente determinada pelo indivíduo e onde o indivíduo determina sua própria vida. Agora, se você mudar isso para o domínio espiritual, então, na religião, encontro o equivalente espiritual do fascismo. A palavra “religião” vem da palavra-raiz “ligare” — que é a mesma raiz da palavra ligadura e ligamento — e basicamente significa “unidos em uma crença”. É basicamente o mesmo que a ideia por trás do fascismo; não há necessariamente um componente espiritual. Tudo, desde o Partido Republicano até o (movimento) Girl Guides, pode ser visto como uma religião, pois estão unidos em uma única crença. Então, para mim, como eu disse, a religião se torna o equivalente espiritual do fascismo. E, da mesma forma, a magia se torna o equivalente espiritual da anarquia, no sentido de que se trata puramente de autodeterminação, a pessoa mágica sendo simplesmente um ser humano amplificado e, em termos mais dramáticos, no centro de seu próprio universo — o que eu acho que é uma espécie de declaração espiritual da posição anarquista básica. Acho que há muita coisa em comum entre a política anarquista e a busca pela magia, que há uma grande simpatia.

MK: Você já ouviu falar do projeto A for Anarchy que aconteceu na cidade de Nova York com o lançamento da versão cinematográfica de V de Vingaça?

AM: Não, não ouvi, por favor, continue, me informe.

MK: Algumas figuras ativistas anarquistas começaram a se colocar do lado de fora das exibições do filme com informações sobre como Hollywood havia retirado a política do filme.

AM: Ah, isso é fantástico, é muito bom ouvir isso, porque essa é uma das coisas que me angustiaram. O que originalmente era uma batalha direta de ideias entre a anarquia e o fascismo foi transformado em uma espécie de parábola de 11 de setembro e da guerra contra o terror, na qual as palavras anarquia e fascismo não aparecem em lugar algum. Na época, pensei: se eles queriam protestar contra George Bush e a forma como a sociedade americana está se comportando desde o 11 de setembro — o que seria totalmente compreensível —, por que não fazem o que eu fiz nos anos 80, quando não gostava da forma como a Inglaterra estava se comportando sob o comando de Margaret Thatcher? Percebi que, para Hollywood, fazer V de Vingança foi uma maneira de os liberais americanos frustrados e impotentes sentirem que estavam fazendo algum tipo de declaração sobre o quanto estavam irritados com a situação atual sem realmente arriscar nada. Tudo se passa na Inglaterra, que eu acho que, provavelmente, aos olhos da maioria dos americanos, é uma espécie de reino de conto de fadas onde talvez ainda tenhamos gigantes. Na verdade, ele não existe; para a maioria dos americanos, poderia muito bem estar na Terra de Oz. Assim, você pode montar sua parábola política nesse ambiente de fantasia chamado Inglaterra e, então, descarregar sua raiva contra George Bush e os neoconservadores. Esses foram os meus sentimentos, e devo admitir que eles se baseiam completamente no fato de não ter visto o filme uma única vez, mas ter lido uma boa porção do roteiro. Isso foi suficiente.

Mas é muito interessante isso sobre as manifestações do A for Anarchy. É fantástico.


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