Apesar de simpatizar com o anarquismo desde a adolescência, uma ideia de que sempre discordava é o incentivo para não votar, não participar de eleições. Décadas atrás, rebatia bastante alguns amigos mais punks com os argumentos comuns:
- A abstenção favorece o candidato majoritário.
- Melhor votar no menos pior, com um voto útil, do que não participar.
- Além de variações e combinações desses pontos.
Não me considero anarquista, estritamente. Sou mais da linha de Noam Chomsky, David Graeber e Murray Bookchin — ou seja, anarquistas que costumam ser desconsiderados pela ala mais estrita do anarquismo1 (com a exceção de Bookchin, que se distanciou formalmente do anarquismo, para não precisar ficar debatendo definições sobre o movimento). Ainda assim, já não voto mais.
Vou tentar explicar a lógica disso. O objetivo não é convencer. Isso é mais para que essa posição seja entendida, já que é uma das ideias anarquistas menos compreendidas — vale sublinhar que ela está longe de ser central para o movimento, sendo mais como uma atitude consequente.
Basicamente, não participo das eleições porque não acredito em um sistema político baseado no poder de governantes, mesmo eleitos. Acredito que deveríamos nos autogovernar, com base em consenso, ajuda mútua e associação voluntária, sem hierarquias ou pessoas com poderes especiais.
Caso participasse de eleições — usando a lógica do voto útil, de escolher o menos pior —, isso seria o mesmo que concordar com o sistema dominante, apesar da aparente utilidade. Porque… qual seria o motivo para votar no menos pior? Seria para tentar efetivar políticas menos piores, e essa resposta trai um consentimento para o tipo de governo atual.
Claro que acho governantes de esquerda menos piores do que de direita, desde que não haja ditadura. Mas o voto no menos pior ainda assim consente, concorda e legitima um sistema de poder que não considero legítimo.
Dá para ilustrar com uma história. Há um famoso conto filosófico, bem curto, de Ursula K. Le Guin2: Aqueles que se afastam de Ômelas (1973). Ele demonstra muito bem a lógica da abstenção social em uma sociedade doente, entre outras ideias.
Vale muito ler e leva só dez minutos (no link acima). Em todo caso, resumo a fábula no parágrafo seguinte.
Há uma cidade perfeita e fantástica, onde todas as pessoas são felizes, sem miséria, desigualdades, conflitos etc, chamada Ômelas. Só há uma dificuldade: uma criança da cidade precisa ser mantida presa nas condições mais abjetas, o tempo todo. Todas as pessoas, em algum momento, têm que testemunhar a tortura e dar consentimento para o processo continuar. Esse é o preço. Se a criança for libertada, a felicidade geral em Ômelas terminará. A maioria absoluta, muito pesarosamente, concorda. Afinal, é o sacrifício de uma única criança em troca da felicidade plena de todas as outras pessoas da cidade. A recusa em concordar implica na saída dessa cidade mágica e o enfrentamento das inúmeras dificuldades do mundo lá fora. Mesmo assim, há um tipo raro de pessoa que, muito ocasionalmente, recusa. Essas pessoas abandonam a cidade voluntariamente.
Cada uma sozinha, elas vão para o oeste ou para o norte, em direção às montanhas. Elas vão. Abandonam Ômelas, sempre em frente para a escuridão, e não voltam. O lugar para onde eles se dirigem é ainda menos imaginável para a maioria de nós do que a cidade da felicidade. Eu realmente não posso descrevê-lo. É possível que não exista.
Mas eles parecem saber para onde vão, aqueles que se afastam de Ômelas.
Essa parábola ilustra também o conflito moral do “sacrifício menor em nome de um bem maior”, bastante comum, por exemplo, em filmes de ação: a heroína vai deixar um número menor de pessoas morrer para que um número maior sobreviva? Na verdade, esses filmes resolvem magicamente o dilema com o herói escolhendo salvar todo mundo e conseguindo, ignorando que optar por ambas as opções está fora de questão — se isso é possível, então não há impasse.
É também basicamente o mesmo tema dessas perguntas:
- É ético sacrificar animais para descobertas científicas? E humanos?
- Vale a pena bombardear uma cidade para acabar com uma guerra?
- Assassinatos e repressão são legítimos em uma revolução que mira um benefício geral futuro?
- Devo aceitar um emprego bem remunerado numa empresa prejudicial?
- Os benefícios de uma nova tecnologia compensam os danos?
- Devo aceitar a desigualdade e miséria alheia como sendo o preço de um suposto progresso?
- Os malefícios óbvios de megacorporações devem ser tolerados em nome de um hipotético benefício maior?
- Devo consumir produtos de empresas nocivas em nome da comodidade?
- E muitas outras.
No conto de Le Guin, “os que se afastam” estão, mesmo que implique em sofrimento pessoal, efetivamente se recusando a participar de uma sociedade, de um mundo, que arquiteta essa escolha, que gira em torno disso.
Comparando com o voto, a opção “menos pior”, o voto útil, seria como consentir com a criança na masmorra. O poder ilegítimo continua intacto, a dominação não foi desafiada nem um mínimo; pelo contrário, votar, mesmo no menos pior, é dar consentimento para a coisa toda.
Claro que os efeitos da abstenção do voto, dentro do ideal anarquista, podem ser questionados. O cenário ideal seria a maioria da população se abster. Se acontecesse, a próxima etapa seria apontar a falência do modelo. Essa suposta democracia não representa a sociedade, pelo contrário, ao se abster, a sociedade está dizendo que o modelo não presta, tem que ser trocado já.
Na prática, a abstenção não é, nem será, tratada como uma rejeição da dominação atual. Por exemplo, nos EUA, já houve eleições em que a maioria da população não votou (como em 1996). Mas isso é simplesmente tratado como se as pessoas estivessem dizendo: “Não me importo, qualquer governante para mim está bom.”
Deveria ser visto como o contrário, uma rejeição sistêmica do tipo: “nenhum governo é bom (só o autogoverno)”. E o trabalho por tal reconhecimento faz parte também da proposta de abstenção como mensagem política.
Há também outra refutação dessa abstenção tática: “Votar no menos pior, para efetivar políticas menos piores, não significa que aprovo o modelo político atual. Isso é simplesmente o mais tangível que eu posso fazer agora em direção à alguma melhoria, e quem não faz isso pode estar contribuindo para a piora.”
Usei esse argumento por um bom tempo, mas acabei reconhecendo um aspecto prático e insidioso do ato de votar. Há uma crença de que votar vai ser bom. Se não houvesse, não votaria. Havendo essa crença, fica difícil afirmar 100% que não acredito no modelo atual. Essa crença contradiz a suposta descrença. Ou seja, ao votar, mesmo não acreditando no poder, isso faz com que comece a acreditar, de certa forma.
Além disso, nesse caso, a abstenção como tática e ideal anarquistas está sendo descartada, em troca de algo supostamente mais útil. Não tem contradição aí, mas há uma falta de confiança em um pilar do movimento: a de que tudo aquilo que sustenta a autoridade e poder ilegítimos precisa ser desfeito, e não auxiliado.
Vale repetir que NÃO estou dizendo: “Não votem!” Foi apenas uma explicação dessa opção.
Mais sobre anarquismo: Você é anarquista? A resposta pode te surpreenderVocê é anarquista? A resposta pode te surpreender
O artigo abaixo é um pequeno clássico de David Graeber, um dos poucos autores anarquistas1 cuja influência rompeu e bolha para muito além do ativismo. Seus livros entraram nas listas de best-sellers e até hoje são amplamente comentados. Entre eles,…
-
Devido à defesa de práticas como sindicalização ou assembleias cidadãs, consideradas “não anarquistas". ↩
-
A escritora considerava o anarquismo “a mais idealista, e para mim a mais interessante, de todas as teorias políticas”. Ela contou que, entre todas as suas obras, Ômelas era a que mais lhe trazia cartas. Mesmo décadas depois, ainda as recebia, com gente comentando possíveis soluções do ancestral dilema moral do conto, ou os desdobramentos éticos para a vida. ↩