Always Coming Home (1985, 640 pgs.) é o romance mais ambicioso de Ursula K. Le Guin, que levou cinco anos para completá-lo. O formato é um conjunto de documentos, ilustrações e estudos antropológicos sobre o povo Kesh, habitantes de vales no norte da América, milênios no futuro. A edição completa era acompanhada até de uma fita cassete, como se fossem gravações das canções e cerimônias Kesh.
Nesse futuro, a atual civilização se perdeu há tanto tempo que foi esquecida quase totalmente — sobraram mitos e lendas esparsas sobre catástrofes ambientais (cujos efeitos ainda são sentidos) e auto-aniquilação.
O povo Kesh é apresentado tanto pela reprodução de sua própria literatura (biografias, romances, poesias…), arte e religião (um tipo de panteísmo natural), quanto na descrição dos elementos de sua cultura por uma antropóloga visitante. Fica subentendido que a cultura Kesh é exótica e isolada, em comparação com o povo dessa antropóloga narradora e das supostas pessoas leitoras do estudo, que parecem ter uma sensibilidade não muito diferente da nossa.
Como nas sociedades mais harmônicas de outras histórias de Le Guin, essas pessoas são livres no sentido anarquista: não há autoridade nem hierarquia, mas sim a auto-organização observada na própria natureza. Há alguma alta tecnologia aqui e ali — incluindo até IA — mas, no geral, é uma sociedade bastante low tech e natural.
Para quem aprecia a obra da escritora visionária, é um banquete, pois descreve em detalhes a utopia mais completa que ela imaginou.
A parte com enredo é a autobiografia de uma mulher, cujo nome vai mudando ao longo de sua vida, dividida em três partes, nos capítulos referidos como “Stone Telling”. A personagem é ligada a um povo invasor agressivo, e os dramas dela giram em torno de suas alianças conflitantes. É uma história envolvente e grandiosa, abrangendo toda uma vida, que pode ser lida independentemente do restante — ocupa metade do livro.
Já as outras partes expandem muito o entendimento e apreciação, por detalhar todo o contexto cultural desse outro mundo. São coisas tão minuciosas — mas significativas — como, por exemplo, a explicação de porque os Kesh desconhecem o significado da expressão “animais de estimação” (pets), usando em seu lugar a palavra “comensal” (que se alimenta e vive junto); ou como o conceito de “pessoa” não se restringe a humanos.
Confesso que não li 100% desse material extra — a própria Ursula escreve na introdução que os apêndices são opcionais. Segui as dicas de Samuel R. Delany (outro consagrado escritor de ficção especulativa) sobre as partes essenciais do livro, que ele comentou na época do lançamento, em 1985. Um trecho de sua efusiva resenha:
Always Coming Home é uma leitura lenta e rica, repleta do que mais gostamos no trabalho dela: uma visão utópica de liberdade, tornada muito mais complexa do que o termo 'utópico' geralmente permite, por um senso de sofrimento humano. Esse é seu texto mais satisfatório em um conjunto de textos que proporcionaram muito prazer imaginativo em seus 23 anos como autora.
Para mim, apesar de não ser seu livro mais envolvente1, foi o mais fascinante e profundo, pedindo releituras para ser melhor absorvido.
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Meu preferido ainda é Os Despossuídos, → Ficção anarquista de Ursula K. Le GuinFicção anarquista de Ursula K. Le Guin
Os Despossuídos (1974), de Ursula K. Le Guin, costuma ser apontado como o grande clássico da ficção anarquista (eu colocaria na lista também The Fifth Sacred Thing, de Starhawk, e o recente Walkaway, de Cory Doctorow). Ursula se consagrou como…. ↩