Os Despossuídos (1974), de Ursula K. Le Guin, costuma ser apontado como o grande clássico da ficção anarquista (eu colocaria na lista também The Fifth Sacred Thing, de Starhawk, e o recente Walkaway, de Cory Doctorow).
Ursula se consagrou como autora daquela ficção científica mais doidona do final dos anos 60 (de Phillip K. Dick etc). É mais conhecida pela série de fantasia Terramar e pelo clássico A mão esquerda da escuridão.
Mas Os Despossuídos é insuperável. A impressão que essa história costuma deixar é a de um retrato extremamente vívido e realista de como funciona uma sociedade (na verdade, todo um planeta) anarquista. Por exemplo, após ler (parte) do tomo Anarchism de George Woodcock, obra crucial sobre o tema, fiquei com a impressão de que Os Despossuídos transmite bem melhor o que é esse ideal.
Por retratar muitas das dificuldades brutais na implementação prática dessa utopia, um mundo real salta aos olhos, completamente verossímil.
O problema do livro é quando ele acaba. Ficamos querendo mais, muito mais.
Mas dá para matar um pouco essa sede com um curto conto que a autora escreveu depois, sobre a fundadora do "odonianismo" (o movimento revolucionário que leva o nome da personagem), chamado O dia antes da revolução.
Em inglês, dá para ler na Anarchist Library. Em português, há um livro de contos com o mesmo título (Portugal).
Um trecho do curto preâmbulo de Ursula para esse conto:
O odonianismo é anarquismo. Não a história de bombas escondidas no bolso, que é terrorismo, apesar de qualquer que seja o nome com que se tente dignificar isso; não o "libertarianismo" do darwinismo social econômico da extrema-direita; mas sim o anarquismo como sugerido no pensamento taoista inicial, e explicado por Shelley e Kropotkin, Goldman e Goodman. O principal alvo do anarquismo é o Estado autoritário (capitalista ou socialista); o seu principal tema moral e prático é a cooperação (solidariedade, ajuda mútua). É a mais idealista, e para mim a mais interessante, de todas as teorias políticas.