A mitologia de ‘Game of Thrones’ e ‘Terramar’

>

Ilustração para a série "Terramar"

Fantasias do tipo capa e espada são um gênero que não me atrai muito. Gostava dos filmes Senhor dos Anéis, quando saíram, como todo mundo; e, na infância, ficava hipnotizado com o desenho animado do Rei Arthur ou os filmes do Conan. Nada muito além disso.

Como amo a escritora Ursula K. Le Guin (Ficção anarquista de Ursula K. Le GuinFicção anarquista de Ursula K. Le Guin
Os Despossuídos (1974), de Ursula K. Le Guin, costuma ser apontado como o grande clássico da ficção anarquista (eu colocaria na lista também The Fifth Sacred Thing, de Starhawk, e o recente Walkaway, de Cory Doctorow). Ursula se consagrou como…
), estava curioso sobre a série de fantasia Terramar, pela qual ela é mais consagrada. Apesar de serem voltados ao público juvenil, os livros são uma unanimidade de público e crítica. Harold Bloom, um dos maiores críticos literários, chegou a dizer o seguinte sobre essas histórias:

Le Guin, mais do que Tolkien, foi quem elevou a fantasia ao nível da literatura, para o nosso tempo.

Ursula K. Le Guin

Comecei a jornada de todos os seis volumes há uns meses. Estou no terceiro, absolutamente cativado por esse universo, seus personagens e o modo mais expansivo, inclusivo e íntimo com que Ursula faz essa saga mitológica brilhar.

Pouca gente sabe, mas Harry Potter foi inspirado (sem dar o devido crédito) em grande parte no primeiro livro dessa série, publicado nos anos 60.

Ursula é uma autora que desafia os padrões vigentes e, na fantasia, mantém esse estilo de forma igualmente envolvente. Não há todo aquele patriarcalismo, e até racismo oculto, consagrados nesse gênero. 50 anos atrás, ela já colocava pessoas pretas e mulheres como os personagens centrais.

A natureza do mal também é pintada de forma mais realista e psicológica, sem a simplificação de vilões que, no final, só são considerados maus porque estão do outro lado da fronteira.

Outro aspecto que adoro é a profunda sabedoria — que pode ser extrapolada para toda a vida — transmitida nessas fábulas, talvez uma influência do orientalismo e da psicodelia dos anos 60. Esse é um dos motivos porque adultos talvez adorem Terramar mais do que o público-alvo original.

Em um período em que se mostra cada vez mais flagrante a falência de modelos éticos baseados em instituições religiosas ou noções de enriquecimento pessoal, essas histórias acabam oferecendo uma âncora de significado, um tipo de resgate.

Cena de "Game of Thrones"

Game of Thrones

Foi por estar mergulhado nesse universo de aventura medieval que comecei a assistir Game of Thrones. Acho que só eu ainda não tinha visto. Pessoas recomendavam, mas não me interessava.

Não esperava, mas adorei, apesar de ser algo diametralmente oposto a Terramar, em termos de crueza e brutalidade. No começo, ficava meio embaraçado de me deleitar em algo cuja camada menos profunda esbanja tanta violência chauvinista, hierarquias patriarcais, erotismo sexista etc. Mas lá pela metade já não conseguia parar de ver.

Fiquei me perguntando por que esse tipo de história é tão fascinante. Além dos aspectos mitológicos como jornada heroica e tudo mais, entendi porque a antiga noção de "honra" é algo que cativa tanto.

Nessas histórias, as pessoas são capazes de viver e morrer plenamente, sem arrependimentos, por algo tão singelo quanto uma promessa assumida! Algo impensável nos dias de hoje, em que reina uma crise sobre o significado e propósito da vida, tanto individual quanto em conjunto.

Provavelmente isso é outro romantismo, que idealiza valores do passado. Talvez na idade média pessoas heroicas não fossem assim tão nobres. Mas esse é um modelo que definitivamente tem muito apelo.

Diante das múltiplas crises, hoje é difícil achar sentido até em coisas como família e sociedade, sem nem falar no trabalho. Já quando cavaleiros e cavaleiras se ajoelham diante da espada e passam a viver em função dos ideais de seus votos, sem a angústia da falta de sentido de existir em um mundo apodrecendo em todos os níveis, nossos corações parecem vibrar com essa possibilidade.

E também gostei de Game of Thrones especialmente porque os aspectos mais sombrios dessa "honra" também estão ali com toda força. Não é à toa que simpatizantes do fascismo, nacionalismo etc cultuam esse tipo de honra heroica, conservadora dos "valores e da moral". Nada pior do que o fundamentalismo cego de quem tem convicção absoluta de estar fazendo o bem.

Isso ficou muito bem ilustrado no desfecho da série.

Há bastante magia e dragões nesse universo, mas o verdadeiro encanto é a evocação de uma empatia profunda com as múltiplas faces das personagens. O autor original dos livros — George R. R. Martin, que também trabalhou na série — é um mestre em retratar a natureza humana de modo empaticamente realista, em que pessoas bem intencionadas não estão livres de sordidez, e as mais desprezíveis também expressam a capacidade de redenção com atos surpreendentemente dignos. São fotografias da alma com a lente da mitologia.

No final, não é sobre aventura medieval com espadas, é a própria vida.

Final é mais consistente do que parece

(ALERTA: SPOILER)

A grande maioria detestou a conclusão do seriado. Há até uma campanha na change.org, com quase dois milhões de assinaturas, para que a última temporada seja refeita.

Mas adorei. Acho até que ela foi de uma ousadia desafiadora.

Durante a série toda, vai sendo construída a expectativa sobre uma suposta monarquia do bem, encarnada em Daenerys, que promete salvar os Sete Reinos. Acompanhamos seu drama desde a destituição completa até o poder absoluto. Torcemos por ela. Queremos acreditar que ela será diferente. Mas quanto mais cresce o poder, mais sinais perturbadores aparecem.

No final, sua história acaba sendo essa: a ascensão e queda de uma heroína envenenada, que se revela megalomaníaca, ainda mais destrutiva do que a arquirrival Cersei, o protótipo encarnado da rainha má — não parece acaso que seu fim tenha sido bem menos cruel do que esperávamos.

Torcíamos também pelo herói Jon Snow, o outsider, marginal, o bastardo que é o verdadeiro rei em segredo; valente, puro e bondoso. Mas seria ele capaz mesmo de personificar um monarca absoluto?

Para mim, foi ótimo ele não ser entronizado no final; eu não teria como evitar a decepção com seu futuro corrompimento ou falha completa (devido à ausência do maquiavelismo necessário). Ao não dar o trono para o grande herói, a história se salva por não justificar essa ideia um tanto ridícula de um rei absolutista que é o salvador supremo.

Na conclusão, o grande triunfo de Game of Thrones é o ciclo completo da saga das irmãs e irmãos sobreviventes; tudo que perderam, viram, fizeram e no que se transformaram, florescendo plenamente em cada um as diferentes sementes que sempre estiveram ali. E é exatamente com esse arrepiante e genuíno coroamento que a série termina (o uso da trilha nessa cena também é impressionante).

(um vídeo lindo para aqueles momentos de saudade desse universo → The Beauty of GoT)