A ecologia de Kropotkin

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Republicação de um artigo no Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA), sobre o anarquista russo Piotr Kropotkin (1842-1921), escrito pelo antropólogo Brian Morris, autor de livros sobre ecologia e anarquismo. Original em inglês.


Kropotkin com cerca de 60 anos, de óculos e barba longa, foto em preto-e-branco

(publicado em 2024-06-19 no ITHA)

Peter Kropotkin, um geógrafo anarquista e socialista revolucionário nascido em 1842 na aristocracia russa, foi um pioneiro na ecologia social e um teórico anarquista proeminente. Após realizar pesquisas na Manchúria e Sibéria, ele se exilou na Grã-Bretanha, onde produziu obras influentes como “Campos, Fábricas e Oficinas do Porvir” e “Apoio Mútuo: Um Fator de Evolução”1. Kropotkin argumentou que os seres humanos, embora parte da natureza, também são distintos dela, tornando-se uma “força geológica” no planeta. Ele propôs uma ecologia social que combinava humanismo e naturalismo, defendendo a descentralização das indústrias e a criação de uma agricultura diversificada e intensiva, fora das restrições do capitalismo. Kropotkin acreditava que a autossuficiência alimentar poderia ser alcançada se os agricultores se libertassem do Estado, do latifundiário e do banqueiro. Ele também criticou o “darwinismo social”, que justificava o capitalismo e o imperialismo, argumentando que a cooperação e o apoio mútuo eram tendências naturais em animais e sociedades humanas. Kropotkin imaginou uma sociedade ecológica baseada em princípios comunistas anarquistas, sem Estado, economia de mercado, propriedade privada, e com uma organização social voltada para a comunidade. Sua visão continua relevante hoje, especialmente em face de uma crise ecológica e social provocada pelo capitalismo.


A ecologia de Kropotkin

Brian Morris2

"É no presente que nos perdemos, se esquecermos nosso passado e não tivermos uma visão do futuro", escreveu o poeta ganense Ayi Kwei Armah.

Este ano marca o centenário da morte do geógrafo anarquista Peter Kropotkin, uma figura do passado que não podemos esquecer.

Geógrafo talentoso, pioneiro da ecologia social e socialista revolucionário, Kropotkin produziu um "tesouro de ideias férteis" (como disse seu amigo Errico Malatesta) que continuam sendo relevantes até hoje.

Filosófico

Nascido em Moscou em 1842, é no mínimo uma das curiosas ironias da história o fato de Kropotkin, que se tornou um dos mais ferozes oponentes de todas as formas de poder estatal, ter nascido nos mais altos escalões da aristocracia russa, já que seus antepassados principescos foram os primeiros governantes da Rússia.

Depois de explorar e realizar pesquisas científicas nas regiões remotas da Manchúria e da Sibéria durante a década de 1860, Kropotkin tornou-se membro da Associação Internacional dos Trabalhadores.

Chegou à Grã-Bretanha em 1886 e permaneceu num "exílio honroso", como Nicolas Walter descreveu, durante os trinta anos seguintes.

Até seu retorno à terra natal, em 1917, com a eclosão da Revolução Russa. Durante seus muitos anos de exílio, Kropotkin tornou-se um dos principais teóricos do movimento anarquista, assim como continuou seus estudos científicos. De fato, o retrato de Kropotkin ainda se mantém pendurado na biblioteca da Royal Geographical Society em Londres.

Naturalista evolucionista como Darwin, Kropotkin era um polímata multifacetado: escreveu livros sobre a grande revolução francesa, como ele a chamava, sobre a literatura russa, sobre as mudanças climáticas e a geografia física da Eurásia, sobre biologia evolutiva e a ecologia social e, em seus últimos anos, escreveu um tratado filosófico sobre a ética.

Força

Aqui me concentrarei num aspecto de sua rica e extensa obra, ou seja, em seus escritos fundamentais sobre a ecologia social.

Para Kropotkin, no coração da vida humana havia um "paradoxo" essencial, pois, por um lado, os seres humanos eram uma parte intrínseca da natureza, o produto de um processo evolutivo e totalmente dependente do mundo natural para obter alimento, água e ar, para sua própria existência.

Mas, por outro lado, os seres humanos eram, de certa forma, "separados" da natureza: a Terra existia há bilhões de anos, muito antes do surgimento dos seres humanos, e os seres humanos, como espécie, eram únicos na combinação de um alto grau de autoconsciência, profunda sociabilidade e por terem desenvolvido culturas e tecnologias simbólicas complexas.

De fato, atualmente se diz que os humanos se tornaram uma "força geológica" no planeta Terra. Num certo sentido, os humanos sim, se "separaram" da natureza.

O que é fundamental em Kropotkin é que este sempre se esforçou para manter essas duas dimensões da vida social humana juntas.

Exploração

Dessa forma, ele combinou o humanismo, com sua ênfase na ação humana e na cultura humana, e o naturalismo, reconhecendo plenamente a dimensão ecológica da vida humana, de que os seres humanos estão sempre "enraizados na natureza". Como filósofo social, Kropotkin era, portanto, fundamentalmente um humanista ecológico, um ecologista social.

Dois livros que ele escreveu (ambos baseados em artigos publicados na década de 1890) exemplificam sua ecologia social: "Campos, Fábricas e as Oficinas do Porvir"3 (1899) e "Apoio Mútuo: Um Fator de Evolução" (1902).

No final do século XIX, Kropotkin passou a se preocupar cada vez mais com duas questões ou desenvolvimentos interrelacionados.

Uma delas era o crescente "abismo" que estava sendo criado entre o campo, destituído de pessoas e, cada vez mais, de sua vida selvagem, e a cidade, com pessoas vivendo na miséria e na pobreza em moradias superlotadas e trabalhando em fábricas onde as condições eram insalubres, exploratórias e completamente antidemocráticas.

Cultivado

A outra preocupação era o desenvolvimento, dentro do capitalismo, de uma forma industrial de agricultura, um sistema de monocultura que esgotava a fertilidade do solo e no qual a agricultura era voltada não apenas para a produção de alimentos, mas para a geração de lucros.

Ele também se preocupava com o fato de que praticamente todas as terras na Grã-Bretanha eram propriedade privada e que enormes extensões de terra eram destinadas a campos de caça – para faisões e galos silvestres – especificamente para a recreação de uma classe dominante rica e poderosa.

Embora pessoas como Trotsky e estudiosos liberais em geral tenham retratado Kropotkin como um intelectual sonhador, um socialista utópico, completamente desligado das "realidades" sociais e políticas, na realidade Kropotkin era um estudioso muito prático e com os pés no chão.

Enquanto Marx passava seu tempo na biblioteca do Museu Britânico estudando economia – principalmente relatórios governamentais –, Kropotkin viajava muito fazendo estudos empíricos de práticas agrícolas e, durante toda a sua vida, ele e sua esposa Sophie cultivavam uma horta… Inclusive, ele fazia seus próprios móveis!

Cultural

Em seu pequeno livro de reflexões “Campos, Fábricas e Oficinas do Amanhã”, que Colin Ward descreveu como uma das "grandes obras proféticas do século XIX", Kropotkin argumentou que todas as formas de indústria, fossem fábricas ou oficinas, deveriam ser descentralizadas. E fez um apelo para o que hoje descreveríamos como a "ecologização" da vida na cidade.

A agricultura do futuro deveria ser diversificada e intensiva: pomares, cultivo intensivo, prados irrigados, pomares de frutas, cultivo em estufas e hortas domésticas. Em sua opinião, a autossuficiência alimentar poderia ser alcançada sem recorrer à agricultura industrial (sob o capitalismo), se o agricultor pudesse se libertar dos três "abutres" (como Kropotkin os descreveu na época): o Estado, o latifundiário e o banqueiro.

Kropotkin se opunha tanto à coletivização estatal da agricultura quanto à agricultura capitalista. Esse trabalho, tanto na indústria quanto na agricultura, deveria – e poderia – ser reduzido a algumas horas por dia, permitindo que os membros de uma comunidade tivessem tempo suficiente para atividades culturais e de lazer.

Brutal

Tudo isso, reconhecia Kropotkin, implicaria numa revolução social e na criação de uma sociedade ecológica baseada em princípios comunistas anarquistas.

Deve-se observar que o livro de Kropotkin teve grande influência em muitas pessoas, incluindo, por exemplo, Lev Tolstoi, Ebenezer Howard (e sua defesa das cidades-jardim), Lewis Mumford e Paul Goodman.

O livro "Apoio Mútuo" talvez seja o trabalho mais conhecido de Kropotkin e ainda continua sendo impresso. Trata-se de uma obra de ciência popular que expressa a preocupação de Kropotkin, no final do século XIX, com o surgimento de uma escola de pensamento que ficou conhecida como "darwinismo social".

O que inicialmente provocou Kropotkin foi um artigo de Thomas Huxley, amplamente conhecido como "o buldogue de Darwin", devido à sua defesa da teoria de Darwin, publicada na revista The Nineteenth Century em 1888.

Citando Hobbes, Huxley descreveu especificamente a vida na natureza — tanto a natureza orgânica quanto a vida social das tribos — como uma vida "solitária, pobre, desagradável, sórdida, bruta e curta".

Ajuda mútua

Depois de Huxley, os darwinistas sociais — incluindo empresários americanos impiedosos como Rockefeller e Carnegie – aplicaram a teoria darwiniana – especificamente o conceito de Herbert Spencer de "sobrevivência do mais apto" – à vida social humana.

Esse conceito foi utilizado como uma justificativa ideológica para promover o capitalismo e o imperialismo, bem como a exploração colonial de povos originários. Isso também significava que os seres humanos, por natureza, eram motivados por impulsos agressivos e eram inerentemente egoístas, competitivos e individualistas possessivos. Kropotkin, é claro, criticou Rousseau e nunca duvidou da existência – da realidade – do conflito, da competição e do egoísmo (agência subjetiva), tanto no mundo vivo quanto na vida social humana.

Entretanto, ele questionou veementemente a visão de mundo hobbesiana (capitalista), argumentando que ela era exagerada e completamente unilateral, e por isso escreveu uma série de artigos sobre "ajuda mútua", ou seja, as atividades cooperativas e o apoio e cuidado mútuos manifestados não apenas nos animais, mas em todas as sociedades humanas e ao longo da história.

A tendência à ajuda mútua, ou o que ele também descreveu como "anarquia", também era claramente evidente "entre nós" nas sociedades ocidentais. A ajuda mútua (ou anarquia) era expressa, segundo Kropotkin, em associações de trabalhadores, sindicatos, vida familiar, instituições de caridade religiosas, vários clubes e sociedades culturais, bem como em muitas outras formas de associações voluntárias.

Saques

O “Apoio Mútuo” não é um texto anarquista, nem uma obra de teoria política, mas reflete a concepção de Kropotkin de uma sociedade futura que ele descreveu como comunismo libertário ou anarquismo.

Isso implicaria na necessidade de uma revolução social e em uma forma de política que envolvesse os três princípios essenciais a seguir:

  • A rejeição do Estado e de todas as formas de hierarquia e opressão que inibiam a autonomia e o bem-estar do indivíduo como um ser social único;
  • Um repúdio à economia de mercado capitalista, juntamente com seu sistema de salários (que para Kropotkin era uma forma de escravidão), propriedade privada, sua ética competitiva e sua ideologia de individualismo possessivo;
  • E, por fim, uma visão de uma futura sociedade ecológica, baseada em ajuda mútua, associações voluntárias, formas participativas de democracia e uma forma de organização social voltada para a comunidade.

Essa sociedade aumentaria a expressão máxima da liberdade individual e expressaria um mutualismo, um relacionamento cooperativo com o mundo natural.

Numa época em que o capitalismo corporativo reina triunfante, criando condições que induzem ao medo, deslocamentos sociais, grandes desigualdades econômicas e uma crise ecológica aguda, a visão de Kropotkin e sua forma de fazer política continuam a ter relevância contemporânea.

Ao contrário dos defensores do "New Deal Verde" – apoiado por Naomi Klein e outros – Kropotkin teria insistido que o Estado capitalista, em vez de ser a solução para a crise ecológica, era na verdade a causa dela.

Pois, como o ecologista social Murray Bookchin argumentou há muito tempo, o capitalismo, em relação simbiótica com o Estado, saqueia a terra para obter lucro e, portanto, é a causa principal da "crise moderna".


Traduzido por Rafael V. da Silva do espanhol ao português.

Publicado em 19/06/2024 no ITHA.

Publicado originalmente en inglés en https://theecologist.org/2021/dec/24/kropotkins-ecology


  1. (nota deste site:) Sobre esse livro → Clássico anarquista continua atualClássico anarquista continua atual
    Li a versão em inglês, mas essa edição em português, da Biblioteca Terra Livre (de 2021), parece ótima. Apoio Mútuo — Um fator de evolução (1902) é o grande clássico do russo Piotr Kropotkin, um dos mais importantes autores anarquistas.…
     

  2. Brian Morris é Professor Emérito de Antropologia no Goldsmiths College e autor de vários livros sobre ecologia e anarquismo, incluindo Kropotkin: The Politics of Community (PM Press 2018). "À memória de um colega, David Graeber (1961-2020)". 

  3. N.T. No Brasil foi editado apenas como “Campos, Fábricas e Oficinas”.