Aceitação do colapso

>

capa do livro “Breaking Together”, com uma estátua rachada de Atlas carregando a esfera celeste, da mitologia grega

Em Breaking Together (2023), o pesquisador inglês Jem Bendell resume a atual catástrofe sociopolítico-ambiental, além de sugerir propostas de mitigação e regeneração para o que restar.

Sim, “para o que restar”, porque em sua análise o desdobramento de um colapso gradual geral não só é inevitável, como já está em andamento há anos.

A primeira metade do livro é a apresentação de detalhadas evidências tanto do colapso como da improbabilidade prática de sua reversão, nas áreas econômica, energética, da biosfera, climática e de alimentação.

Um trecho:

Os argumentos da primeira metade deste livro podem ser considerados simplesmente uma observação de dados, e não uma teoria ou opinião. Se alguns cientistas quiserem alegar que estou analiticamente errado em minha identificação do colapso em curso da estrutura das sociedades, convido-os a nos mostrar todos os dados sobre a consistência plurianual da redução das emissões de gases de efeito estufa, combinada com a redução das concentrações de gases de efeito estufa em nossa atmosfera, a redução das perdas de biodiversidade e a redução da acidificação dos oceanos. Convido-os a nos mostrar dados que indiquem uma consistência plurianual de um aumento nos Indicadores de Desenvolvimento Humano na maioria dos países. Sem isso, eles podem responder que as sociedades modernas não podem estar entrando em colapso porque “os caixas eletrônicos ainda funcionam, a TV está ligada e os supermercados ainda estão abertos”. Mas, como acadêmicos, não devemos nos concentrar apenas nas fachadas dos sistemas que a análise científica identificou que já estão se rompendo.

A outra metade contém suas propostas para lidar com a situação. É aí que entra o título do livro. Em vez de meramente nos despedaçarmos (“break apart”), podemos “quebrar juntas” (“break together”), no sentido de comunidade, de união frente ao desastre. Por exemplo, na organização e combinação de movimentos sociais, e na restauração da ligação com a terra e a natureza.

Ele expõe sua visão, que chama de “ecolibertarianismo”, sem relação com capitalismos e marxismos, além de propostas descentralizantes para política e economia.

Achei interessante sua visão para o decrescimento1. A ideia geralmente é criticada por implicar uma redução forçada das economias dos países mais ricos, já que isso é inseparável da destruição ambiental, e jamais seria auto-implementada, pois nenhum país rico aceitaria um curso de “empobrecimento” — entre aspas porque isso se refere só ao PIB, que não mede a verdadeira riqueza ou pobreza de uma nação. Mas o decrescimento desses países poderia ser forçado por uma união dos países mais pobres, através de barreiras comerciais e outras medidas do tipo.

Jem Bendell está longe de ser o único pesquisador que defende o reconhecimento do atual colapso e sua irreversibilidade prática. Mas é um pensamento considerado radical e “catastrofista” não apenas pela ideologia dominante, mas também entre a esquerda política, já que o ponto comum dessas duas correntes é o desenvolvimentismo. Aceitar a ruína completa desse modelo seria algo inaceitável ou até inconcebível, mesmo com tantos dados e evidências.

Partilho da visão do autor em grande parte, mas não vejo como certo um colapso geral da civilização como conhecemos em 20 ou 30 anos. Só acho possível, e talvez leve mais tempo devido a medidas meramente prorrogadoras, caso não haja uma transformação radical de toda a estrutura.

O pensamento padrão é classificar isso como derrotista, inútil, “é preciso pensar em soluções” etc. Mas há uma utilidade bastante óbvia que é simplesmente admitir o que está diante de nossos olhos. Depois disso, a alarmante constatação é só uma questão de extrapolar para o futuro, considerando as probabilidades sociopolítico-econômicas de haver mudanças radicais de curso.

Jem brinca que ressignificou a pecha de “apocalíptico” (“doomster”) que colaram nele. Às vezes, usa uma camiseta com a frase “apocalípticos se divertem mais.” Também acho. Pelo menos, não há negacionismo, a realidade é vista de frente, e então podemos nos dedicar para o que é realmente importante, em vez de ficar sonhando com um tecno-otimismo milagroso.

Boa parte das pessoas que estudam climatologia já concordam em parte com as previsões mais negativas: o sistema climático não vai voltar a ser o que era por décadas, talvez séculos, mesmo que todas as emissões parassem agora; é certo que vai haver um agravamento da emergência climática. O que precisa ser feito é evitar uma piora ainda mais extrema, mitigar, reduzir os danos daquilo que virá, preparar e adaptar.

Bendell é conhecido por um influente artigo acadêmico: Adaptação Profunda, de 2018. Virou até um movimento e influenciou outros, como o Extinction Rebellion.

O artigo previa um “colapso da estrutura das sociedades” em pouco tempo, 10 ou 15 anos, devido a fatores como a emergência climática. No livro atual, ele corrige algumas posições. Admite que não foi claro sobre o que significava “estrutura das sociedades” (“societal”) e corrige isso. Diz também que errou sobre quando o colapso iria iniciar. Segundo a revisão dos últimos dados, feita pela equipe que o ajudou na pesquisa do livro, a coisa já teria começado em 2016 em algumas partes do mundo. O texto, considerado extremamente catastrofista na época por seus pares e a mídia, se mostra hoje até tímido em relação ao modo como a emergência climática vem se desdobrando.

Decepção

Contudo, há um porém difícil de ignorar em Breaking Together. Perto do final, o autor usa a pandemia de Covid como um exemplo de como mesmo os setores considerados progressistas ou de esquerda terminam apoiando medidas que beneficiam corporações como as da big pharma. Ele critica as medidas que foram tomadas como vacinação em massa, uso de máscaras e lockdown.

Quase não acreditei no que estava lendo. Sua crítica principal é sobre a imensa influência que as gigantes farmacêuticas, e outras corporações, exercem sobre os governos, mas termina exagerando quando menciona supostas ineficácias das vacinas ou do lockdown.

Foi uma decepção gigantesca, porque se ele está errado sobre as vacinas, por que não estaria sobre tudo o mais?

Entretanto, acho que o restante do livro não é anulado por esse horroroso deslize. Ainda foi um dos livros mais importantes de não ficção que peguei nos últimos anos.

A obra está disponível para download no site do autor.


  1. Por que precisamos de ‘decrescimento’?Por que precisamos de ‘decrescimento’?
    Segue a tradução de uma entrevista com o filósofo japonês Kohei Saito, sobre sua visão para a ideia (comum no debate sobre a atual policrise) de um necessário decrescimento. Ela é apresentada no livro O Capital no Antropoceno (2020). A…