Ficção científica como sempre quis

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Capa do livro "The Actual Star"

The Actual Star (2022), de Monica Byrne, é o tipo de livro que estou sempre buscando na ficção científica, mas raramente encontro. Convergem vários dos tópicos que mais me interessam atualmente: utopia pós-apocalíptica, anarquismo, psicodélicos, emergência climática, tecnologias regenerativas, questionamentos cosmo-espirituais etc.

O sumário não parece grande coisa: três histórias interligadas com intervalos de mil anos — em 1012, 2012 e 3012 — que usam a mitologia Maya para falar de reencarnação, colapso e regeneração. Na verdade, assim que li a sinopse, desejei distância, imaginando algo new age, era de Aquário, calendário Maya, ou do tipo "conspiritual". No mínimo, parecia uma história batida, como a daquele filme médio Cloud Atlas (2012), das Wachowski, ou do ótimo Fonte da Vida (2006), de Darren Aronofsky.

Mas vi diversos elogios efusivos, até de figurões que admiro como Kim Stanley Robinson e Cory Doctorow. Descobri que há também uma utopia do tipo anarquista e decidi encarar. Ao terminar, fiquei com aquela sensação da abertura: esse é o meu tipo de livro.

O cenário scifi é uma civilização extremamente reduzida (por desastres ambientais), resiliente e avançada, que conseguiu sobreviver ao capitalismo e superá-lo. Ao mesmo tempo que não há governos, exploração ou hierarquias de poder, predomina uma religião do tipo salvacionista, com origem em 2012, que remonta aos mayas.

O andamento é desigual. Há sequências do tipo vira-páginas, e muitas nem tão intensas, de descrição de cenários, conversas etc. Mas é o tipo de livro que só revela seu valor completo no final.

Minhas piores expectativas foram quebradas várias vezes. Imaginava que talvez a história fosse glorificar a cultura Maya, como costuma acontecer em contos new age. Mas não. Há uma imersão intensa, bastante educativa até, em um aspecto considerado repulsivo, a dos rituais com sacrifício humano. Fiquei meio embasbacado: há toda uma dimensão sobre isso que ignorava completamente.

Como a autora tem formação em ciências e no estudo de religiões, temia também que a história poderia estar se encaminhando para o lugar-comum da desconstrução de mitos religiosos. Mas, nossa… É tão mais do que isso!

O livro é bem atual por incluir um contexto planetário do tipo "cli-fi" (ficção climática). Hoje, quando vejo alguma história apocalítica que ignora isso, inventando algum outro motivo para a situação desastrosa, já até desconsidero.

A parte futurista não é fácil de acompanhar. Há muitas palavras novas (o glossário no final é essencial). Mas as inovações na língua são bem interessantes. Elas acompanham uma evolução de gênero onde todos tem dois sexos, pelo menos fisiologicamente, e refletem culturas do Sul global que passaram a dominar (descolonização é um tema central na história), além de tecnologias fantásticas — por exemplo, realidade aumentada em conjunção com doses endógenas de psilocibina, ou lóbulos extrassensoriais.

Há também muitos diálogos em kriol (creole), dialeto caribenho permeado de corruptelas do inglês, que para anglófonos já não é fácil entender. Pra mim, essas frases passaram quase todas em branco. Mesmo assim, deu pra seguir a história.

Pessoas também se ofenderam com as descrições intensamente explícitas de sexo e mutilações. Realmente, não é para todos os gostos, mas nada que distraia demais do enredo.

Beleza entrópica

Um elemento central que adorei, e que me deixou pensando até agora, foram as discussões sobre entropia, o fato de que todo sistema organizado enfrenta um movimento de degeneração constante. Isso é extrapolado para dimensões cosmológicas (por ex., a expansão do universo em direção a um vazio gelado), espirituais (a inevitável separação de uma união primordial) ou sociais (a dissolução de utopias ou distopias).

Fiquei pensando em uma cosmologia religiosa hindu que é referida apenas indiretamente. Nessa alegoria, a criação do universo foi um jogo que a divindade absoluta inventou por estar entediada. Ela então se esqueceria de que é tudo, onisciente e onipresente, e se deixaria fragmentar em infinitas partículas e instantes de consciência limitada. O deleite extremo dessa brincadeira seria a rica variedade, em vez de uma estática singularidade, o deslumbramento com a existência e o próprio autorredescobrimento. Assim, existir é um jogo de prazer divino. Cada descoberta ou experiência possuindo lúdico deleite cósmico. (Há um livro inteiro do grande Alan Watts, inesquecível, com uma interpretação laica desse mito.)

Essa alegoria cosmológica também aparece bastante em relatos de viagens psicodélicas, mesmo quando a pessoa não sabe sobre hinduísmo. Ali, ela percebe e reconhece diretamente cada movimento, inclusive de si mesma, como sendo o cosmos, junto com o sentido disso.

No livro, uma personagem pergunta:

— Como alguma coisa poderia se conhecer se ela não se separar?

Essa referência à beleza que existe na separação, na entropia, também é algo bastante significativo no idealismo filosófico, a ideia de que a natureza da realidade é mental, e não material (Tudo é menteTudo é mente
Esse é um dos melhores livros de filosofia que peguei nos últimos anos: The Idea of The World, de Bernardo Kastrup. É uma formulação sistemática e moderna do "idealismo", a ancestral ideia de que a natureza da realidade é mental,…
). Há a aparência de que as experiências e fenômenos estão separadas da consciência, mas um exame profundo pode revelar o contrário.

O livro termina com a melhor frase final que já li (sem perigo de espoliar):

Como ela pôde um dia esquecer? — de que é tão prazeroso se dispersar quanto estar completa.