O problema difícil da consciência, e a confusão entre abstração e realidade

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Ilustração sobre dualidade mente e corpo
Ilustração: Jayachandran/Hindustan Times

Segue abaixo um ótimo artigo ligado à filosofia da consciência. Apesar do tema ser espinhoso, o mérito desse texto é a rara clareza com que expressa ideias complexas.

Contém uma das melhores explicações que já vi sobre o "problema difícil da consciência". Essa é uma questão difícil até de formular, já que é um tipo de meta-pergunta, um questionamento que se volta sobre a experiência do próprio questionamento, ou basicamente de tudo.

Alguém poderia perguntar: "Qual é a relevância? Pra que filosofar sobre isso?"

Apesar de toda conceitualização e palavreado, inevitáveis, o ponto central aí é: do que a realidade é feita? Se ela for uma coisa diferente do que imaginamos, não vale a pena pelo menos conhecer os argumentos?

É um texto sobre as falhas do materialismo filosófico dominante, e uma opção melhor: o idealismo, a ideia de que a natureza da realidade é mental e não material (Idealismo de Bernardo KastrupIdealismo de Bernardo Kastrup
Estou numa maratona dos livros sobre filosofia idealista de Bernardo Kastrup. Faz tempo que partilho do idealismo — a noção de que a natureza da realidade é mental, e de que a matéria é uma aparência — e a formulação…
).

"Que diferença faz se a natureza da realidade for mental e não material?"

Essa é uma pergunta imensa. Mas, entre as várias consequências, as que me vêm primeiro à mente são:

  • O paradigma de exploração e acumulação material excessivas (com todas suas consequências destrutivas) seria revisto.
  • Objetivos de vida também tenderiam mais a uma valorização da ética, relações e propósito, pois se há uma mente (ou vida) maior da qual somos instâncias, isso traz outro sentido à existência.
  • Sem envolver crenças sobrenaturais, haveria menos medo e sofrimento com coisas como morte e perda, já que esses seriam fenômenos relativos.
  • Haveria menos insatisfação e frustração com a prisão da individualidade, com a falta da transcendência de limites, já que a própria existência já seria transcendente por natureza.

O artigo abaixo apareceu primeiro em um grupo de discussão ligado a Bernardo Kastrup — hoje talvez o melhor expoente do idealismo analítico — que depois republicou o texto em seu blog.

Segue a tradução, que publico com autorização do autor.


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A lebre ultrapassando o jabuti não é uma ilusão — o que os paradoxos de Zeno podem nos dizer sobre o problema difícil da consciência

Por Stephen Davies | 2020.08.29

(original publicado no blog de Bernardo Kastrup)

Leitura: 18 min.

Ilustração do paradoxo de Zeno do jabuti
Ilustração do paradoxo de Zeno, em que Aquiles jamais ultrapassaria o jabuti.

Um dos paradoxos do filósofo pré-socrático Zeno envolve uma corrida entre uma lebre e um jabuti1. Aqui está uma versão diferente desse paradoxo: eu desafio o recordista mundial Usain Bolt para uma corrida de 100 metros. Minha única condição é que ele me dê uma vantagem de 10 metros. Ele aceita. Agora explicarei por que ele não pode me vencer.

A corrida começa. Para me ultrapassar, Bolt precisa primeiro chegar ao meu ponto de partida na marca de 10 metros. Isso levará algum tempo; digamos, cerca de um segundo. Nesse segundo, eu terei me movido para frente a partir da marca de 10 metros; digamos, 5 metros.

Portanto, agora, após um segundo de corrida, Bolt está no ponto de 10 metros e deve alcançar minha nova posição no ponto de 15 metros. Isso levará cerca de metade de um segundo, mas nesse tempo eu terei avançado novamente uma pequena distância.

Não há fim para esse processo; por mais rápido que Bolt alcance o ponto em que eu estava, terei usado esse tempo, por mais curto que seja, para avançar, embora por uma distância menor a cada vez. Por menores que sejam o tempo e as distâncias, Bolt nunca poderá me alcançar, sempre estarei à frente.

Portanto, o paradoxo é que é impossível para Bolt me ultrapassar em uma corrida de 100 metros. Como sabemos que isso não é verdade, o paradoxo está nos dizendo que algo está errado com o processo que nos levou a essa conclusão.

O que está errado no paradoxo da lebre e o jabuti é que a série interminável de pontos pelos quais, no meu exemplo, Bolt teria que passar não são pontos reais. Eles são abstrações. Os pontos não estão lá, marcados no chão, eles fazem parte de uma teoria. Bolt não precisa passar por um número infinito de coisas reais, apenas por um número infinito de ideias, um número infinito de abstrações.

Não parece tão impossível agora passar correndo por pontos infinitos como uma ideia abstrata, parece? E, melhor ainda, como cada ponto abstrato é um ponto sem dimensão e sem comprimento, mesmo que eles existissem, quanto tempo leva para passar por algo que não tem comprimento? Não importa quantos pontos de comprimento zero você tenha, zeros não somam nada.

Outro paradoxo de Zeno afirma que flechas não podem voar. O argumento aqui é que, em qualquer momento específico do voo, a flecha não está se movendo; em qualquer instante do tempo, a flecha estará parada naquele ponto específico. Imagine capturar um vídeo do voo da flecha e depois ver cada quadro do vídeo: em cada quadro, a flecha não está se movendo.

Novamente, sabemos que flechas voam pelo ar, portanto, esse paradoxo deve estar nos dizendo que há algo errado com o processo de pensamento, não com a flecha voadora.

Zeno cometeu aqui o mesmo erro com o tempo que cometeu com a distância da lebre e o jabuti; ele supôs que o real é feito de abstrações, que o tempo é feito de instantes congelados. Da mesma forma que um ponto infinitesimal em uma linha não tem comprimento e, portanto, a linha não pode ser composta de pontos, um instante congelado no tempo não tem duração e, portanto, um período de tempo (o voo da flecha) não pode ser composto por instantes sem duração.

(Os paradoxos de Zeno também foram solucionados pela matemática usando somas de séries infinitas que tendem a um limite. As séries infinitas descritas por Zeno podem, na verdade, ser calculadas dentro de um limite finito, portanto, há um ponto que pode ser calculado em que Bolt me ultrapassará. Assumir que tempo e espaço são discretos — que eles têm um comprimento mínimo diferente de zero — também é uma forma de resolver os paradoxos. Não há instantes de tempo; há uma duração mínima de tempo e a seta estará se movendo dentro dela).

Vamos agora desviar nossa atenção da distância e do tempo, das lebres e flechas, e olhar para a consciência. Tentarei formular um novo paradoxo do tipo de Zeno para a consciência, e verei qual luz isso lança sobre o problema difícil da consciência.

Antes de formular esse novo paradoxo, precisamos explorar brevemente o que é o problema difícil da consciência e, para isso, precisamos examinar a filosofia metafísica do materialismo. Em termos simples, essa filosofia afirma que tudo é feito de matéria, de material físico. Você pode se perguntar por que uma afirmação aparentemente tão óbvia e autoexplicativa requer o título de filosofia metafísica. A razão é que o materialismo não está apenas dizendo que existem coisas físicas, mas que tudo é físico. O materialismo está dizendo que os pensamentos que você está tendo agora são físicos; está dizendo que a curiosa e única mistura de emoções que você está experimentando subjetivamente neste exato momento são pura e exclusivamente coisas físicas materiais. E está dizendo que a consciência que testemunha todos esses sentimentos subjetivos é física. Isso já não parece tão óbvio, parece?

Além de parecer um pouco estranho supor que todas as nossas experiências mentais, emocionais e espirituais e o experimentador subjetivo sejam, na verdade, objetivos, externos e físicos, os materialistas não têm absolutamente nenhuma ideia, nem mesmo genérica, de como a matéria poderia criar nossa rica vida interior de consciência e experiência. Isso é o que é referido como o problema difícil da consciência.

É por isso que o materialismo é uma filosofia metafísica. É uma teoria com uma suposição que tenta explicar todas as coisas. Ela não se saiu nada bem quando se trata de explicar sua experiência contínua e imediata de tudo. Há outras teorias que, sem dúvida, fazem um trabalho melhor nesse sentido. Veremos uma delas mais adiante.

Mas o que dizer da ciência? O sucesso indiscutível e fenomenal da ciência e da tecnologia não é uma prova de que o materialismo é uma teoria extremamente bem-sucedida? Não. A ciência é agnóstica em relação à filosofia metafísica. O método científico e todos os avanços e descobertas tecnológicas que se seguem funcionam perfeitamente bem independentemente de suas crenças filosóficas. Esse é, de fato, seu ponto forte: ele se baseia em dados empíricos, não em crenças.

A conexão entre o método científico e a filosofia do materialismo nada mais é do que o fato de que a maioria dos cientistas tende a ser também materialista. É isso. Há cientistas que não são materialistas; sua ciência não é menos válida. O sucesso da ciência vem de seguir o método científico, não das crenças filosóficas do cientista.

O materialismo, portanto, postula que a consciência — se é que é alguma coisa — deve ser física; deve ser assim porque tudo é. Todas as suas experiências subjetivas são simplesmente propriedades da matéria. Todas as suas experiências subjetivas são simplesmente propriedades de arranjos materiais, assim como as outras propriedades físicas de massa, carga, rotação etc.

Qualquer experiência subjetiva consciente, de acordo com o materialista, deve, portanto, ser descritível em termos puramente mensuráveis e físicos. Assim como podemos descrever a massa e a carga das partículas em números e suas interações com equações, o materialista deve explicar todas as experiências conscientes da mesma forma; um materialista deve tratar a consciência da mesma forma que a matéria porque, para ele, ela é matéria; porque tudo é matéria.

Cientistas encontram muitas correlações entre a experiência consciente e os estados cerebrais, e os estados cerebrais podem ser descritos matematicamente. Isso parece promissor para o projeto materialista. Como neurocientistas são, em sua maioria, materialistas filosóficos, eles tendem a presumir que essa correlação é evidência de causalidade, ou seja, que toda e qualquer experiência consciente pode ser reduzida a um estado cerebral específico. Isso significaria que eles poderiam descrever a consciência com números e equações, pois suas experiências conscientes nada mais seriam do que propriedades físicas de arranjos neurais precisos em seu cérebro.

Mas lembre-se do problema difícil. Nenhum cientista, e nenhum materialista, tem ideia de como isso seria possível. Simplesmente não há nenhuma hipótese testável sobre como as experiências subjetivas conscientes surgem como propriedades dos neurônios no cérebro. As correlações são científicas, mas a ideia de que os cérebros causam a consciência permanece firmemente metafísica.

A teoria metafísica de que tudo é matéria é uma filosofia, não um fato científico. Mas podemos ir além e dizer que até mesmo a suposição de que existe qualquer matéria é igualmente uma teoria e uma suposição filosófica, não um fato científico. A ideia de que existe matéria física fora de nossa experiência consciente é apenas isso, uma ideia. Só sabemos com certeza que temos experiência subjetiva; não podemos saber com certeza o que constitui essa experiência. A única coisa que sabemos com certeza é nossa experiência imediata de estarmos subjetivamente conscientes. Tudo o que podemos saber só pode ser conhecido por nós dentro — e por meio — de nossa experiência subjetiva.

O método científico explora com sucesso o comportamento do conteúdo de nossa experiência subjetiva e nos entrega tecnologia como resultado, mas o método científico não descobriu a essência ou a verdadeira natureza do conteúdo de nossa experiência consciente. Ele pode descrever, prever e imitar o que acontece, mas não nos diz o que é.

A teoria mais bem-sucedida da física, de longe, é a teoria quântica de campos. Ela afirma que o que consideramos matéria é mais bem compreendido e previsto por uma equação de probabilidades. Alguns experimentos recentes em mecânica quântica levaram Bernardo Kastrup e outros à conclusão de que a ideia de que existe um mundo físico objetivo e externo é praticamente insustentável. Os resultados verificados apontam fortemente para a conclusão de que cada observador está experimentando seu próprio mundo, assim como em um jogo de computador para vários jogadores, em que cada jogador tem sua própria visão do mundo do jogo com o qual interage.

Essa descrição quântica de nossa experiência do mundo parece eminentemente compatível com nossa descrição anterior da única coisa que podemos saber com certeza — que cada um de nós está tendo uma experiência subjetiva — e, na verdade, ela argumenta coerentemente contra a suposição materialista de um mundo físico externo e objetivo fora da consciência. Parece que o que o mundo é, conforme descrito pela melhor ciência que temos, se encaixa perfeitamente com o que sabemos com certeza: nossa experiência subjetiva.

Uma interpretação consistente dos experimentos da mecânica quântica chega ao ponto de dizer que a experiência "material" que cada um de nós tem só existe quando há uma medição ou observação. Sem isso, a matéria permanece como nada mais do que uma possibilidade, uma probabilidade calculável de existência.

Esses resultados experimentais, apesar de surgirem de um desejo materialista de explorar a suposta natureza física e material da realidade, nos levaram a uma descrição de um mundo que não é um mundo físico externo e objetivo; eles descreveram mundos separados que aparecem para cada experimentador subjetivo e que são — antes da realização de uma medição ou observação — nada mais do que probabilidades.

À luz disso, não é um salto tão grande de imaginação propor uma filosofia não materialista, ou seja, a ideia metafísica do idealismo, que afirma que a consciência é de fato fundamental, não apenas epistemologicamente (ou seja, sobre o que é conhecido), mas também ontologicamente (ou seja, sobre o que existe).

O idealismo não apenas explica suas experiências subjetivas imediatas — algo que o materialismo falhou completamente em realizar —, mas também parece que o idealismo se encaixa muito bem em nossa melhor ciência empírica, que fornece evidências de que a consciência pode ser instrumental na criação do nosso mundo. Podemos simplesmente postular que as probabilidades quânticas do que pode acontecer — a partir das quais, concorda-se, toda a matéria surge — são de natureza mental. Isso nos dá a consciência como a base do mundo "material", bem como de nossa vida interior.

Conjurar possibilidades do que pode acontecer é algo com o qual todos nós estamos muito familiarizados e que nossas mentes conscientes podem fazer com bastante facilidade. Do mesmo modo, o idealismo postula que a natureza compartilhada e consistente do mundo quântico que todos nós experimentamos se deve ao fato de que todos nós estamos dentro de uma consciência fundamental abrangente que gera as probabilidades quânticas. Após nossa observação, essas probabilidades se tornam o mundo que cada um de nós vivencia.

Em contraste com essa visão idealista do mundo, a filosofia materialista postula um mundo físico externo e objetivo que não pode ser conhecido diretamente. Nossa única experiência desse mundo, se é que ele existe, é por meio de nossas experiências subjetivas. A ideia de que existe um mundo físico externo objetivo é uma abstração pensada pela consciência. E é uma teoria abstrata que está se tornando cada vez menos apoiada pelos resultados de nossos melhores experimentos científicos em mecânica quântica.

Ironicamente, então, apesar da estreita associação entre cientistas e filósofos materialistas, a melhor ciência — longe de fornecer evidências de que a natureza essencial de nossa experiência é a fisicalidade objetiva e externa — na verdade funciona de forma muito menos problemática com uma filosofia não materialista, como o idealismo, em que a consciência é o fundamento de toda experiência, não a matéria; a única coisa que podemos saber com certeza é a única coisa dentro da qual todas as nossas experiências ocorrem.

Então, o que isso tem a ver com os paradoxos de Zeno, em que, como vimos, a suposição de que as experiências de movimento são feitas de abstrações (pontos sem dimensão em uma linha e instantes de tempo congelados) levou ao paradoxo de que o movimento e a movimentação são impossíveis?

Materialistas foram vítimas desse mesmo tipo de paradoxo. Enquanto Zeno questionava como o movimento poderia ser possível, materialistas começaram a questionar como a consciência poderia ser possível. Enquanto Zeno postulava pontos e instantes abstratos, materialistas postulam um mundo físico objetivo e externo fora da consciência. Enquanto Zeno supunha que a distância e a duração são feitas de pontos e instantes abstratos, o materialista supõe que nossas experiências subjetivas são feitas de sua formulação abstrata de um mundo físico externo objetivo. Assim como Zeno descobriu que haveria um paradoxo se a distância e a duração fossem constituídas por suas abstrações, materialistas estão lutando para descobrir como as experiências conscientes podem ser constituídas por suas abstrações e medições: eles se depararam com o problema difícil da consciência.

Se pegarmos qualquer experiência fenomenal — por exemplo, sentir o pavor existencial de ter de voltar ao escritório em uma manhã escura e fria de segunda-feira no meio do inverno quando o despertador toca — poderemos capturar todo o quadro físico desse momento. Em particular, digamos que tenhamos uma varredura completa do que está acontecendo exatamente em nossos cérebros no momento em que sentimos medo.

O paradoxo, então, é que (de acordo com uma suposição materialista) todas as experiências conscientes podem ser descritas em termos de estados cerebrais e nada mais do que propriedades desses estados. Mas o problema difícil da consciência diz que não há nada em nenhuma das propriedades físicas da matéria, desse estado cerebral específico, que possa explicar uma experiência fenomenal de consciência, do pavor existencial. O ponto alto do paradoxo é que a experiência não pode estar acontecendo e, no entanto, sabemos que está.

Materialistas estão cometendo o mesmo tipo de erro dos paradoxos de Zeno sobre tempo e distância; eles estão presumindo que uma experiência que sabemos que acontece é composta de abstrações que podemos usar para descrever essa experiência.

O paradoxo da lebre criou uma abstração de pontos infinitesimais para descrever uma distância e, em seguida, presumiu que as distâncias reais eram compostas por esses pontos, por essas abstrações. O paradoxo da flecha criou uma abstração de instantes atemporais para descrever o voo da flecha e, em seguida, presumiu que os períodos de tempo reais eram compostos de instantes atemporais. Materialistas criaram a abstração da matéria física e, em seguida, presumiram que a consciência é composta pelas medições associadas dos estados cerebrais. Eles presumem que a experiência real é composta por essas medições abstratas de um mundo material abstrato.

Infelizmente, o materialista não para aí. Comete outro erro: ele não usa a falsidade óbvia da conclusão (de que a experiência consciente não pode acontecer) para analisar o que deu errado em seu pensamento; materialistas não questionam sua suposição (de que suas abstrações fisicalistas criam consciências) e, em vez disso, questionam a realidade das experiências conscientes.

O materialista-ilusionista insiste em uma conclusão paradoxal e afirma que a experiência consciente é impossível; ela deve ser algum tipo de ilusão. O ilusionista está dizendo o equivalente a: "Bolt realmente não pode ultrapassá-lo em uma corrida de 100 metros. O fato de ele parecer cruzar a linha primeiro é uma ilusão". Ao negar a experiência consciente, o ilusionista está dizendo o equivalente a: "Flechas não podem voar. Essa flecha em seu peito é uma ilusão." Mas o mais bizarro de tudo é que o ilusionista está literalmente, e não metaforicamente, dizendo que não podemos ter experiências conscientes.

(Por mais estranho que possa parecer, ilusionistas realmente existem. Não os inventei para defender um ponto de vista abstrato. O mais preocupante é que eles são levados a sério).

O ilusionista acredita que seus equivalentes materialistas dos pontos sem dimensão e instantes atemporais são ontologicamente reais; ele acredita que suas abstrações físicas e descrições da matéria são ontologicamente reais. Ainda mais incrível do que acreditar na conclusão de Zeno de que comprimentos e durações — movimento e movimentação — são impossíveis e ilusórios, o materialista-ilusionista realmente acredita que a experiência subjetiva que você está tendo agora, e que eles próprios estão tendo a cada momento, é impossível e, portanto, algum tipo de ilusão abstrata e não real. Eles acreditam que suas abstrações são reais e que a realidade é uma abstração.

Acreditar em uma conclusão tão paradoxal só pode ser possível se alguém estiver tão apegado aos seus processos abstratos e às suposições equivocadas que o levaram até lá, a ponto de estar mais disposto a negar sua própria experiência imediata do que questionar sua crença filosófica. Essa é a mentalidade de um fundamentalista; está tão ligado à sua crença filosófica que questionará qualquer realidade que não se encaixe, até mesmo a única realidade que é inegável, o fato de que estamos tendo uma experiência subjetiva.

Materialistas não ilusionistas cometem um erro diferente dos ilusionistas. Eles percebem, para seu crédito, que as lebres metafóricas ultrapassam jabutis, que as pessoas podem ser atingidas por flechas; ou seja, eles acreditam que temos experiências conscientes. Mas, novamente, eles não querem questionar sua suposição de que suas abstrações têm uma ontologia, a de que suas medições abstratas criam a realidade que estão medindo.

Em vez de ilusionismo, o materialista que aceita experiências conscientes está envolvido no equivalente à tarefa impossível de descobrir quantos pontos sem dimensão compõem uma linha; quantos instantes atemporais compõem uma duração de tempo; ou seja, exatamente como os estados cerebrais criam a experiência consciente. Essa tentativa — equivalente a tentar contar infinitos infinitesimais — continua, sem esperança de chegar a um fim.

Para ser um materialista, você tem uma escolha difícil a fazer: escolher o caminho fundamentalista de negar a realidade inegável ou assumir o fardo de Sísifo, rolando incessantemente a pedra da matéria em direção à consciência, condenado para sempre à rolagem de volta ao início de sua falsa suposição.

Em vez disso, podemos escolher um caminho mais simples e menos abstrato e adotar a certeza epistemológica da consciência como nossa base ontológica na forma de uma consciência fundamental abrangente da qual todos nós fazemos parte. Com isso como filosofia, podemos continuar a progredir com métodos científicos empíricos, mecânica quântica e tecnologia, e procurar entender melhor todos os aspectos de nossa existência, inclusive nossa vida interior, bem como nossa experiência de nosso mundo compartilhado.

Lebres ultrapassam jabutis, flechas voam pelo ar e nós temos experiências conscientes. O fato de ser possível descrever e medir várias abstrações associadas a todos esses fenômenos não significa que esses fenômenos sejam feitos dessas abstrações, e certamente não significa que esses fenômenos sejam impossíveis ou ilusórios.

Aprendamos com Zeno e partamos da premissa de que a consciência é real e que quaisquer paradoxos, que pareçam sugerir que ela não é, são resultados de suposições equivocadas. Como diz Bernardo Kastrup, não existe um problema difícil da consciência, ele é simplesmente um resultado de pensar errado.

Deixemos de lado nossa suposição equivocada de que a consciência é feita de matéria, que a matéria de alguma forma cria a consciência; paremos de categorizar abstrações como realidade. Comecemos com o que é real e conhecível, nossa experiência consciente imediata, e exploremos, dentro dessa base, os padrões e a dinâmica de toda a nossa experiência.


© Todos os direitos reservados. 2020 Stephen Davies. Publicado com permissão.


  1. (Nota do tradutor:) Esopo é o autor da famosa fábula da corrida entre a lebre e o jabuti. Já o paradoxo de Zeno menciona uma corrida entre um jabuti e o herói Aquiles. Frequentemente, quando esse paradoxo é mencionado, Aquiles é substituído pela lebre.