O Livro

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capa do livro "The Book"

Já mencionei algumas vezes o livro The Book — On the Taboo Against Knowing Who You Are (1966), de Alan Watts. Lembrava dele com carinho, de uma leitura há uns seis anos, e acabei de completar uma das futuras releituras. Dessa vez fiz questão de adquirir (num sebo) uma cópia física pra folhear.

Watts se formou em teologia e chegou a ser capelão de uma universidade, mas era basicamente autodidata. Atuou como um dos precursores da ebulição psicodélica dos anos 60 e também costuma ser descrito como um cativante intérprete das filosofias orientais para o ocidente. Mas esse livro não é sobre isso.

Ele condensa uma ideia que Watts não cansava de transmitir, de muitas maneiras diferentes, sobre a verdadeira natureza de nossa identidade.

Geralmente consideramos que nossa identidade reside no corpo, em uma consciência (ou alma) que o habita, ou numa combinação de ambos. Apesar de o livro citar bastante religiões orientais (principalmente vedanta hindu), essa questão é desmontada e analisada, com todos seus desdobramentos, sem a adoção de crenças espirituais.

Não há nenhum segredo. Hoje em dia isso já é senso comum em seções significativas da filosofia e ciência. Nossos corpos são expressões de um ecossistema que, por sua vez, é expressão do modo como a realidade se organiza e manifesta. O mesmo poderia ser dito, em certo sentido, sobre nossas mentes ou mesmo tudo. Nada existe de modo isolado e independente.

Até aí, nenhuma revelação chocante. Mas a consequência dessa compreensão e visão é que "então, na verdade, não sou o que imaginava, essa identidade limitada de um eu isolado independente, e tudo que fiz até agora se baseou nesse engano". Cada aparente partícula da existência é a própria existência ou universo se expressando de modo 100% unificado.

Esse insight pode gradualmente passar a orientar o modo de perceber, pensar e agir. Aí sim, tudo começa a mudar radicalmente, potencialmente em direção à algo mais vasto e aberto.

A qualidade essencial do livro é a prosa envolvente que embala essa investigação profunda, capturando bastante da eloquência oral de Watts1.

Sua mensagem básica não é muito diferente do que dizia o filósofo Spinoza, no século 17. Mas Watts é mais persuasivo, musical e psicodélico.

Levando em conta a época, também não poderia deixar de ser um inconformista incorrigível. Suas reflexões muitas vezes resvalam, de um modo que até parece involuntário, em tiradas sociopolíticas deliciosamente corrosivas.

Apesar de hoje ele ter sido elevado a um patamar quase de guru, Watts jamais se apresentou assim. Nem era nenhum exemplo de conduta, juntando-se ao predominante clube de pensadores com belas palavras e comportamento um tanto desprezível. Não que tenha sido um charlatão abusivo, mas pessoas de sua família não necessariamente o admiravam2.

Entretanto, não acho que foi um hipócrita e, além do mais, quem sou eu para especular sobre isso…

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  1. Ele falava em um programa de rádio. Para conferir, busque por áudios de Alan Watts. Vídeos inspiracionais com suas falas abundam no Youtube, devido à fluência com que transmitia ideias provocadoras. Esse, por exemplo

  2. Esse artigo na Aeon mergulha nas contradições pessoais de Alan Watts.