Segue a tradução de um artigo sobre a histórica inclinação anarquista de alguns movimentos ambientais, e vice-versa. Escrito por Andrew Flood, ativista anarquista e autor contemporâneo irlandês.
Outros artigos de Flood estão disponíveis na Anarchist Library (em inglês), que também republicou uma entrevista sobre suas impressões do anarquismo nos EUA.
O artigo provavelmente é anterior ao movimento Extinction Rebellion, que também tem influência anarquista marcante.
A tradução é de Rafael V. da Silva e foi publicada originalmente no site do Instituto de Teoria e História Anarquista, em 2024.06.04 (republicada aqui com permissão).
O anarquismo e o movimento ambientalista
Andrew Flood
O principal problema de qualquer debate sobre o “Movimento Verde” é que ele não existe como um corpo único de ideias. Em vez disso, tanto os indivíduos quanto as organizações têm uma série de posições, que vão desde o anarquismo em seu espectro político até ideias influenciadas pelo fascismo. Quaisquer termos, ambientalismo, ecologismo etc., são definições muito vagas de um amplo conjunto de ideias e práticas, provavelmente ainda mais amplo e vago do que o conceito de socialismo.
Portanto, não deveríamos criar uma falsa alternativa entre anarquismo e ambientalismo, mas sim perguntar que tipo de teoria e ação ambiental nós, anarquistas, deveríamos apoiar por um lado e, por outro, explicar por que todo ambientalista deveria ser também um anarquista classista.
Há um bom argumento de que alguns dos primeiros anarquistas, em particular Kropotkin, foram os criadores de algumas das concepções básicas comuns à teoria ambiental radical atual. Da mesma forma, alguns anarquistas contemporâneos, como Murray Bookchin, exercem grande influência na teoria ambiental moderna. Essa conexão histórica e atual é provavelmente o motivo pelo qual muitos ativistas ecológicos radicais já se definem como anarquistas.
Por outro lado, há pessoas que se autodenominam ambientalistas com as quais não temos nada em comum e que deveríamos repudiar, bem como os políticos e movimentos reacionários. Um grande problema do movimento verde é que os elementos progressistas muitas vezes não conseguem se distanciar seriamente dos elementos reacionários. Isso pode ser verificado atualmente com o isolamento deliberado sugerido no slogan “nem esquerda nem direita, mas verde”.
Podemos ter uma compreensão simplificada da variedade de ideias verdes imaginando dois eixos de teoria e prática da proteção ambiental:
- Táticas de organização: da ação direta ao parlamentarismo de liderança dos dirigentes
- Motivação: do misticismo misantrópico ao materialismo humanista
A interseção entre as táticas de direção/parlamentarismo e o misticismo misantrópico é atualmente e historicamente inútil, na melhor das hipóteses, e frequentemente muito perigosa ao oferecer abrigo para tendências políticas profundamente reacionárias. Na Alemanha, em 1920, por exemplo, havia uma organização de massa chamada Sangue e Solo que representava justamente essa combinação. Em 1923, seu manual de recrutamento incluía: “Em cada alemão treme uma floresta com suas cavernas e ravinas… é a fonte da essência alemã, da alma alemã”. Em 1939, 60% de seus afiliados das principais organizações de “proteção à natureza” haviam se unido ao Partido Nacional Socialista (em comparação com 10% de toda a população masculina que o fez).
Em 1942, Himmler usaria o “ambientalismo” como justificativa para a anexação da Polônia, escrevendo: “O camponês de nossa estirpe racial sempre procurou cuidadosamente aumentar os poderes naturais do solo… e preservar o equilíbrio de toda a natureza…. Se, portanto, o novo Lebensraum1 deve se tornar uma pátria para nossos colonos, então a acomodação planejada da paisagem o mais próximo possível da natureza é um pré-requisito decisivo”. Isso não quer dizer, é claro, que todos os ambientalistas sejam fascistas, longe disso, mas não se pode presumir com segurança que eles sejam automaticamente progressistas.
Seções do Movimento Verde na Alemanha hoje em dia reviveram alguns dos teóricos do “Sangue e Solo”, cujos detalhes podem ser encontrados no folheto da AK Press “Ecofascismo: Lições da Experiência Alemã”. Isso não quer dizer que todos os ambientalistas são ou se tornarão fascistas, longe disso, mas deve ficar claro que o rótulo “ambientalista” não é garantia de uma política progressista em outras áreas.
A ala do ambientalismo que está mais aberta ao anarquismo é a interseção ou combinação oposta, a da ação direta e do materialismo humanista. Tem por base o entendimento de que o meio ambiente é importante porque é onde vivemos. Dessa forma, não podemos escapar das consequências da degradação ambiental. Esse entendimento é complementado por ações para proteger o meio ambiente com base em ações diretas contra a poluição e assim por diante. Em vez de depender de um “imposto verde” ou de outras novas leis para salvar a Terra.
Muitos desses ecologistas já usam a etiqueta “anarquista” para se distanciar do reformismo respeitável dos Partidos Verdes. Mas outros chegaram ao anarquismo porque há uma lógica distinta e poderosa entre eles e nós.
O anarquismo traz para o ambientalismo uma compreensão do porquê o meio ambiente se degrada. Que se trata no fundo, da obtenção de lucro por parte de interesses poderosos sobre os quais exercemos pouco controle na sociedade atual. Para um anarquista, pouco importa se esses interesses poderosos são as classes dominantes privadas da Europa Ocidental ou os burocratas estatais que anteriormente dominavam a Europa Oriental e que ainda controlam grande parte da economia global.
Para resumir, como anarquistas, estamos cientes de que somos condicionados pelo meio ambiente para existir, estamos cientes de que o “Poder”, seja ele baseado na indústria ou no Estado, deseja destruir grande parte do meio ambiente localmente em busca de poder e lucro. Por fim, estamos cientes de que a única maneira de deter o “Poder” é a ação direta contra seus projetos no curto prazo e uma mudança revolucionária da sociedade no longo prazo.
Entretanto, há outro elemento em comum com a ala radical ou progressista do movimento ambientalista. Para muitos envolvidos, os métodos usados também representam uma forma de fuga da miséria da vida cotidiana sob o capitalismo. Essa atitude, que muitas vezes é definida nos círculos anarquistas como “primitivismo”, é algo que também precisamos debater. Os acampamentos dos movimentos anti-estradas na Grã-Bretanha e na Irlanda representavam mais do que apenas uma forma de impedir projetos rodoviários desnecessários e questionar as prioridades em relação ao transporte. Para muitos, eles também representavam um modelo alternativo de como poderíamos viver. Um modelo sem hierarquias e mais conectado à natureza.
Os documentos oriundos desses acampamentos geralmente os retratavam como ilhas de fuga do capitalismo, e neles procuravam desenvolver uma teoria de como as pessoas poderiam ser autossuficientes e viver entre si, em alguns casos até mesmo tentando escapar da dependência do estado de bem-estar social (desemprego etc.). A criação de colônias para “escapar do capitalismo” não é um fenômeno novo, mas também tem um paralelo histórico associado ao anarquismo. Na década de 1920, por exemplo, isso se expressou pelo crescimento das comunas nos EUA.
Vou criticar essa tendência, mas deixe-me começar moderando essa crítica, dizendo que, como anarquistas, devemos defender o direito das pessoas de escolher qualquer estilo de vida que desejarem na sociedade atual. E, numa sociedade anarquista futura, devemos deixar claro que as pessoas escolherão viver de várias maneiras. Gosto de cidades e da diversidade cultural que vem com elas, portanto, certamente acredito que as cidades existirão no futuro, mas também devemos deixar claro que algumas pessoas escolherão viver em comunas muito menores, de maneiras que consideram estar mais em contato com a natureza. Como as pessoas são livres para escolher como viver, não apenas não deveríamos ter problemas com isso, mas deveríamos desejar uma sociedade assim.
Uma sociedade em que as pessoas possam alternar entre diferentes modos de vida e diferentes comunidades como quiserem, sem as desvantagens econômicas e a repressão política que acompanham essas escolhas na sociedade atual.
O que quero criticar, entretanto, é a ideia de que esse tipo de opção pode mudar a sociedade ou, mais fundamentalmente, que se todos fizessem essa mudança de estilo de vida, ocorreria uma revolução porque o capitalismo deixaria de funcionar.
Isso menospreza fundamentalmente a força de vontade do capitalismo de obrigar as pessoas a trabalhar. O capitalismo, quando confrontado com uma escassez de trabalhadores, tem pouca dúvida em expulsar as pessoas da terra e fazê-las escolher entre o trabalho na fábrica ou passar fome. Historicamente, foi esse, pelo menos até certo ponto, o objetivo dos Enclosure Acts2 na Grã-Bretanha do século XVIII. A divisão da terra em unidades claramente marcadas levou dezenas de milhares de pessoas que não podiam fazer uma queixa formal a deixar o campo e ir para as cidades. As condições nas cidades naquela época eram horríveis, com a taxa de mortalidade excedendo a taxa de natalidade.
Hoje, testemunhamos fenômenos semelhantes em muitos países do “terceiro mundo”, onde enormes áreas de terra ficam em repouso, enquanto os camponeses sem terra são forçados a se mudar para as favelas da cidade e ganhar a vida em condições quase impossíveis. Portanto, não devemos nos esquecer de que o capitalismo tem suas armas e que, no passado histórico e fora do primeiro mundo, ele não hesita em usá-las quando precisa de mão de obra.
Fundamentalmente, muitos trabalhadores não terão o desejo de escolher o estilo de vida associado a “deixar tudo para trás”. Gostamos dos confortos da sociedade de consumo do capitalismo. Sou um grande fã do Playstation, por exemplo, e esses itens só podem ser produzidos em sociedades industriais avançadas. Estou disposto a lutar por uma sociedade em que nós, como classe, decidamos o que produzir e se os benefícios da produção compensam os danos ambientais causados pela produção. Estou até disposto a reconhecer que, pelo menos por um tempo, podemos decidir que produzir fogões a carvão é mais importante do que produzir Playstations. Estou disposto a lutar por uma sociedade em que as pessoas possam escolher seus próprios estilos de vida. Mas não lutarei por uma sociedade que se limite a pequenas comunas e à indústria de baixa tecnologia.
Por fim, esse é o cerne de uma análise anarquista do ambientalismo. Numa sociedade em que controlamos democraticamente a produção, optaremos por não poluir ou limitar a poluição a um nível que possa ser assimilado. Também reconhecemos a necessidade de lutar contra atividades prejudiciais no “aqui e agora” e vincular essas lutas a outras lutas para mudar a sociedade. Defendemos o direito das pessoas de serem diferentes no aqui e agora, de escolherem seu próprio estilo de vida, sexualidade, preferências musicais e tudo o mais. Essa posição nos torna automaticamente aliados do objetivo radical do movimento verde para mudar da política do protesto permanente para a política da mudança permanente.
Traduzido por Rafael V. da Silva do espanhol ao português.
Publicado no ITHA em 04/06/2024.
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N.T. O chamado “espaço vital” alemão, uma doutrina racista e expansionista dos nazistas que defendia o direito da Alemanha em ocupar certos territórios onde viviam minorias alemães. ↩
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N.T. Conhecido como “cercamentos dos campos”, processo que durante a Revolução Inglesa, expulsou os camponeses e trabalhadores rurais dos campos e os forçou a trabalhar nas cidades. ↩