Ficção para expandir a visão de mundo

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capa do livro “Playground”, com a foto de uma arraia no fundo do mar

Playground (2024, 400 pgs.), de Richard Powers, era um dos livros que mais aguardava. Afinal, The Overstory1 foi provavelmente a melhor ficção que já li — escrevi isso ano passado (O segredo das árvoresO segredo das árvores
Acho que The Overstory (2018), de Richard Powers, foi o melhor livro de ficção que já li. "Acho" porque não parei para criar uma classificação, mas não lembro de algo tão poderoso. Terminei uma segunda leitura, com uma impressão mais…
) e ainda vale.

Não decepcionou. É magnífica ficção especulativa (beirando a científica), agora formando a trilogia ecológica do autor, com The Overstory (2018) e Deslumbramento (2021). Em vez da palavra “ecológica”, ele prefere o termo “trilogia sobre pertencer ao mundo”, no sentido de que vai contra a narrativa dominante de que humanos, por sua suposta superioridade, praticamente estariam além da natureza e, então, poderiam fazer o que quiserem com ela. Isso está na raiz da atual emergência ambiental. Nesses livros, a natureza não é algo separado, um cenário ou fonte de recursos. É protagonista. A natureza não nos pertence, pelo contrário, nós é que pertencemos a ela.

Como comentou um crítico, o que The Overstory faz com árvores — muita gente se sentiu transformada, passando a enxergar melhor a natureza —, Playground faz com o oceano. Mas é um livro com foco menor e arco narrativo menos expansivo, que interliga quatro personagens (no primeiro livro, eram nove).

A trama gira em torno da ilha (real) de Makatea, na Micronésia, região de arquipélagos entre Filipinas e Havaí. Tentando se recuperar da mineração que a devastou no século passado, e diante do aumento do nível do mar, sua pequena comunidade recebe uma proposta de re-industrialização, para a construção de uma cidade flutuante para um grupo de tecno-bilionários que quer fugir de regulamentações e impostos.

Outro tema central é a tecnologia da informação e a vida de um tecno-bilionário. Acompanhamos o personagem Todd Keane desde a adolescência nos anos 70 até sua transformação num onipotente tech-bro muskiano. Senti-me um pouco dividido pela simpatia que esse bilionário desperta, mas pensando melhor, talvez valha mais um retrato humanizado da megalomania do que uma condenação simplista.

Como Powers foi programador antes de se dedicar à ficção, computadores são uma constante em suas histórias2. Além da biosfera, um tema paralelo e central é inteligência artificial. Não há como comentar muito sem espoliar, mas posso dizer que foi um dos melhores retratos sobre isso que já vi na ficção, incluindo uma reviravolta desnorteante.

Também é um livro sobre uma intensa e tocante amizade (praticamente um “bromance”), a desse bilionário com outro gênio deslocado, só que mais traumatizado, um rapaz negro de quem se tornou inseparável na escola.

Apesar de o autor querer fazer a natureza tocar o coração da mesma forma como o drama humano3, senti pessoalmente que as pessoas emocionaram mais nesse livro. Outra diferença é que a mensagem ecológica é menos incisiva. Está o tempo todo ali, mas deixa a iniciativa de se indignar mais para quem lê. Dosagem perfeita.

Comparo tanto com o primeiro livro porque me marcou demais. Mas Playground é totalmente independente, e pode funcionar até melhor para determinado público, como jovens, devido à pegada mais de sci-fi, e a conclusão aberta, sem uma “moral da história” muito definida.

Sua tendência ao otimismo também é um alívio diante dos tons apocalípticos predominantes na ficção ecológica. Ele explicou em entrevistas4 a lógica desse otimismo, que está longe do polianismo ingênuo de imaginar que tudo terminará bem: humanos não são os personagens principais, a vida na Terra é quem protagoniza; esse processo natural sempre se virou bem, com uma criatividade infinita, mesmo diante das maiores catástrofes planetárias. Ou seja, independente do que acontecerá com nós humanos, a vida maior vai cuidar de si, como sempre fez.


cada do livro “Deslumbramento”, com uma criança abraçando uma árvore por trás dela, sem aparecer

Deslumbramento

Li o segundo livro dessa trilogia não oficial, Deslumbramento (2021, 336 pgs.), quando saiu. É um drama de pai e filho em um mundo em colapso socioambiental. O filho de nove anos Robin tem autismo, além de outras condições neurológicas desafiadoras, e se engaja em protestos ambientais (claramente inspirado em Greta Thunberg).

Quando sua condição se agrava, começa a participar de um experimento científico em que seu cérebro recebe padrões neuronais escaneados de outras pessoas. Ele melhora bastante, especialmente quando integra os registros de sua falecida mãe.

É quase uma releitura da clássica história de ficção científica Flores para Algernon (1958), sobre uma experiência científica que multiplica as habilidades cognitivas.

O livro sofre um pouco se for comparado com os outros dois dessa trilogia. Mas, por si só, é ótima ficção ecológica e científica.


  1. A tradução para The Overstory deve ser publicada em breve pela editora Todavia. 

  2. Ficção sobre IA old schoolFicção sobre IA old school
    Li o romance Galatea 2.2 (1995) por ter me tornado grande fã de Richard Powers, pelo livro The Overstory (O segredo das árvores). É sobre um escritor escalado para treinar uma rede neural — "à moda antiga", com tecnologia dos…
     

  3. Conforme contou nessa entrevista

  4. Nessa entrevista para a New Yorker