Missa da Meia-Noite (2021, Netflix) é uma série limitada (sete episódios) bem singular. Começa devagar com questionamentos espirituais e existenciais acima da média, e deslancha — ou descamba, para quem não é fã — para um gênero clássico do terror (não vou dizer qual pra não dar spoiler), no quarto episódio.
Sou fã de "terror católico" desde a infância, quando não conseguia dormir depois de ver A Profecia ou O Exorcista, nos anos 80. Estou muito longe de ver alguma relevância pessoal na mitologia católica. Mas, como elemento ficcional, adoro. Quer coisa mais cristã do que o diabo? É um dos meus personagens favoritos. (Não é cômico isso? Aquelas bandas de death metal que cultuam Satanás, no fundo, são grupos bem cristãos, já que a ideia de um ser maligno todo-poderoso faz parte da doutrinação dessa religião.)
Como cresci em meio à cultura católica, mesmo em uma família laica, o lado mais obscuro dessa doutrina sempre projetou sobre mim um fascínio assustador. Hoje, o que sobrou disso foi a apreciação dessa qualidade de horror ficcional.
É mais ou menos como o conceito de Deus, ou de uma divindade onipotente. Não tenho inclinação para acreditar nisso. Mas, como elemento de ficção científica, é algo fascinante — vide a trilogia VALIS, de Philip K. Dick, ou as histórias O Fim da Infância e Os Nove Bilhões de Nomes de Deus, de Arthur C. Clarke.
Missa da Meia-Noite examina a questão da fé católica, e também a mais geral, nesse contexto de fantasia delirante. Quando o terror engata de vez pode vir certo senso de decepção, mas vale a pena persistir. Como nas melhores obras do gênero, o horror é só um cenário ou alegoria para ideias mais profundas.
No entanto, a cena que dá título ao seriado é uma das mais perturbadoras que já vi. Se isso fosse lançado há umas décadas, provavelmente seria proibido pela igreja.
Também vou lembrar de Missa da Meia-Noite devido a uma das melhores reflexões à beira da morte de todos os tempos. Chega a ser psicodélico — aliás, essa é uma influência bastante óbvia na série —, rivalizando com o monólogo final do filme Beleza Americana (1999).
Inesquecível também é o desfecho. É uma dessas raras histórias de horror recheadas de beleza.
Paradoxo espiritual do mal
Um dos episódios dessa série contém um dos questionamentos mais comuns sobre a ideia de Deus. Como foi a terceira vez que ouvi esse argumento nos últimos dias, lá vai uma reflexão paralela.
O resumo desse argumento é: "A ideia de um Deus bom e amoroso é absurda e contraditória, porque há muito mal no mundo. Se esse Deus permite esse mal, não há como ele ser bom."
Esse é um dos principais paradoxos da teologia católica, havendo dezenas de milhares de páginas de escrituras sobre isso.
Não me considero religioso, muito menos cristão, mas, como alguém interessado em filosofia e estados de "união não-dual" (sob uma perspectiva laica), não acho isso tão complicado de compreender.
Encontrei pela primeira vez a resposta para essa questão de forma bem singela, quando adolescente: em um gibi meio lisérgico chamado Monstro do Pântano (sou fã até hoje do autor Alan Moore, famoso por Watchmen e V de Vingança).
Basicamente, a resposta está naquele símbolo taoista do yin & yang. Bem e mal estão inseparavelmente unidos. Eles, na verdade, são conceitos interdependentes, relativos, já que o que é o "bem" para determinada pessoa, para outra pode não ser. E isso fica mais relativo ainda quando consideramos tudo o que existe além da esfera humana. O que existe em absoluto, além de aspectos relativos, é a Realidade. Ela é impessoal mas, dependendo da percepção e conceitos individuais, seus aspectos podem ser considerados positivos ou negativos.
Em religiões panteístas como o taoismo, essa Realidade em si é o absoluto, supremo, além dessas dualidades ou conceitos. Tudo é expressão dela. Assim, ela poderia ser chamada de perfeita. Isso também costuma ser descrito como amor ou compaixão porque esses sentimentos transcendem a auto-importância individual — é bastante comum nas experiências de união não-dual essa sensação de um amor infinito transbordando em todas as direções.
Quem diria que um texto sobre um seriado de terror terminaria no infinito. Aproveitando, segue uma recomendação de um dos livros que mais gosto que explora profundamente esses temas: A Filosofia Perene, de Aldous Huxley.