A Queda da Casa de Usher

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Imagem promocional da śerie "A Queda da Casa de Usher"

A Queda da Casa de Usher (2023) é uma ótima nova minissérie (oito episódios) Netflix. Não sou fã de horror, mas admiro o criador Mike Flanagan, que também fez:

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Apesar do rótulo, não é exatamente horror. Há vários elementos dramáticos e profundidade psicológica. A marca de Flanagan que mais gosto é seu compasso ético. Terror com (bom) coração. Através desse tipo de ficção, ele deixa comentários intensamente vívidos sobre a natureza humana, especialmente o quanto traumas nos definem.

Em Casa de Usher há um terreno novo muito bem-vindo: temas sociopolíticos, já que tudo gira em torno de uma dinastia arquetípica do capitalismo predatório.

O primeiro episódio lembra tanto Succession que parece um pastiche (só pode ser proposital, imitaram até a música!). A diferença é a inclusão de mortes macabras. Então, no início, fica um ar de esquete pré-fabricada, apesar da produção impressionante. Há uma fórmula padrão para cada morte.

Como já conhecia a obra de Flanagan, insisti. Deveria haver algo mais profundo.

Não decepcionou. É preciso ir até o final.

Vale alertar que é horror fantástico, apesar de aspectos contemporâneos ganharem destaque, como influenciadores, IA e outras tecnologias. Há um elemento-chave sobrenatural como em Sandman — que deve ter sido outra fonte de inspiração.

A fonte maior, contudo, é Edgar Allan Poe (séc. 19), um pioneiro dos contos de horror. Símbolos de suas histórias mais famosas são inseridos em cada episódio e dão título a eles, além do nome da própria série e das personagens principais. Mas não é fundamentalmente uma adaptação de Poe. Fãs do poeta gótico que esperavam isso se decepcionaram.

A trama básica contém uma história real, a da corporação farmacêutica Purdue, que colocou ilegalmente um opioide (Oxycontin) altamente viciante no mercado, mascarando seus efeitos. Isso deu origem à atual explosiva epidemia de vício em opioides como heroína e fentanil. Apesar de os nomes serem outros, a referência é óbvia. Séries sobre ruína social e humanaSéries sobre ruína social e humana
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A minissérie mergulha na vida da família que controla essa corporação, cujos membros — em guerra mútua — começam a morrer de modo macabro. Há todo aquele "capitalism porn" dessas obras que tiram sarro de ricaços. Como no terror "slasher", também não falta a recompensa vingativa de ver essas divindades capitalistas sofrendo horrores (sou cético sobre o benefício disso: no final, não é uma válvula de escape certeira para um problema bem real?).

O diferencial é que a discussão sobre o que move esse tipo de pessoa é mais profunda e ética, sem cair na caricatura ou demonização. O magnata central, por exemplo, é suficientemente ambíguo para despertar simpatia. Vemos ele nitidamente hesitando e oscilando diante do abismo de suas escolhas.

Um tipo de história que sempre me fascinou é a do "pacto com o diabo". Nela, entregamos o que temos de mais precioso e duradouro — simbolizado pela "alma" — em nome de prazeres materiais, egoístas e temporários.

Por que essa fábula continua relevante há mais de 300 anos? Essa é relativamente a idade de nossa modernidade e Casa de Usher também é uma reflexão impactante sobre tal "síndrome de Fausto".

Um atrativo extra das criações de Flanagan, para mim, é que são sempre os mesmos atores, em sua maioria; todos ótimos. Sinto até que já os conheço, de tanto que os vi interpretando.

Mas não adoro tudo o que Flanagan produziu. O longa-metragem Gerald's Game (2017) não é ruim, daria nota 7. Diria o mesmo da minissérie A Maldição da Residência Hill (2018). Estão acima da média, mas abaixo do restante que produziu.

Ficou um incômodo no final, mas não culpo os produtores. Talvez seja uma limitação de criar ficção intensamente humana, baseada em corporações vorazes reais — ou seja, sem nenhuma humanidade.

Essa história do analgésico arrasa-civilização, na série, fica parecendo que foi a escolha individual de um sociopata. Na vida real, sabemos que esse modus operandi repulsivo é o padrão de qualquer grande corporação. Isso transcende executivos individuais, por isso é tão desumano. Há aí apenas um princípio "ético": trazer lucro aos acionistas, independentemente do sofrimento que irá causar. É assim na indústria do petróleo, do tabaco, das big techs ou de qualquer mega-extração de "recursos", que no final são vidas.

O fato de que a dupla de vilões multibilionários é do tipo "self-made", começando do zero até o império, também é compreensível, já que a fábula da alma vendida não funcionaria de outro modo. Na vida real, esse é um dos contos-da-carochinha que vende o peixe do "capitalismo de sucesso".