The Next Revolution (2015) reúnde artigos, dos anos 90 aos 2000, do influente autor revolucionário Murray Bookchin. Como diz o subtítulo, é sobre democracia direta e assembleias populares.1
Após abandonar o socialismo, o estadunidense Bookchin se tornou um dos mais influentes autores anarquistas nos anos 60. Nos anos 90, se distanciou também do anarquismo — não por discordar dos princípios, mas por se sentir encurralado pelas definições alheias sobre o movimento e pelas acusações resultantes.
(Mais sobre Bookchin em: (Pós-)Anarquismo de Murray Bookchin(Pós-)Anarquismo de Murray Bookchin
Imagem: roarmag.org Para que diabos estamos tentando fazer uma revolução? Para recriar a hierarquia, posicionando um sonho obscuro de liberdade futura para a humanidade contemplar? Para promover mais avanços tecnológicos? Para criar uma abundância de bens ainda maior do que….)
Como é um livro que reúne os artigos de sua fase conclusiva, as ideias têm esse sabor de síntese de uma vida dedicada ao pensamento revolucionário, que ele condensou no que chamou de “ecologia social”. Sua teoria revolucionária é o “municipalismo”, de inegável sabor anarquista.
A lendária escritora Ursula K. Le Guin escreve na introdução do livro:
Murray Bookchin passou a vida inteira se opondo ao ethos voraz do capitalismo de crescimento-ou-morte. Os nove ensaios deste livro representam o ponto culminante desse trabalho: a base teórica de uma sociedade ecológica igualitária e diretamente democrática, com uma abordagem prática de como construí-la. Ele critica os fracassos de movimentos passados de mudança social, ressuscita a promessa da democracia direta e, no último ensaio deste livro, esboça sua esperança de como podemos transformar a crise ambiental em um momento de verdadeira escolha — uma chance de transcender as hierarquias paralisantes de gênero, raça, classe, nação, uma chance de encontrar uma cura radical para o mal radical de nosso sistema social. Ao ler o livro, fiquei emocionada e grata, como sempre fiquei ao ler Murray Bookchin. Ele foi um verdadeiro filho do Iluminismo em seu respeito pelo pensamento claro e pela responsabilidade moral e em sua busca honesta e intransigente por uma esperança realista.
Resumindo grosseiramente, municipalismo é uma teoria de mudança radical, porém gradual e não violenta, das sociedades à partir de comunidades pequenas que adotam o modelo político da democracia direta, em que as próprias pessoas decidem o que é melhor para elas, ao invés de votarem em governantes e partidos delegados para decidir. O resultado de implementações desse modelo pelo mundo provou ser algo muito mais satisfatório para as comunidades envolvidas. Com base nessa eficácia, o modelo poderia se expandir gradual e exponencialmente em uma federação de comunidades autogeridas associadas2.
Segue abaixo um dos artigos, que relaciona a crise ambiental — que ele já reconhecia como ameaça catastrófica em 1992 — com a urgência de uma transformação política além do socialismo (e, obviamente, do capitalismo).
No livro, esse texto vem depois do capítulo detalhando o funcionamento do municipalismo, por isso, é mais focado em discutir as falhas dos modelos meramente reformistas, autoritários e hierárquicos.
Quem sabe no futuro eu reproduza também o capítulo sobre municipalismo.
A crise ecológica e a necessidade de reconstruir a sociedade
Murray Bookchin
(janeiro de 1992, extraído do livro The Next Revolution, 2015)
Ao abordar as fontes de nossos atuais problemas ecológicos e sociais, talvez a mensagem mais fundamental que a ecologia social transmite seja a de que a própria ideia de dominar a natureza decorre da dominação de humanos por humanos. A principal implicação dessa mensagem mais básica é a exigência de uma política, e até mesmo de uma economia, que ofereça uma alternativa democrática ao Estado-nação e à sociedade de mercado. Aqui, apresento um esboço geral dessas questões para estabelecer as bases para as mudanças necessárias na direção de uma sociedade livre e ecológica.
Primeiro, o caminho mais fundamental para a resolução de nossos problemas ecológicos é social em caráter. Ou seja, se estamos diante da perspectiva de uma catástrofe ecológica total, para a qual tantas pessoas e instituições bem informadas afirmam que estamos caminhando hoje, é porque a dominação histórica de humanos por humanos foi estendida da sociedade para o mundo natural. Até que a dominação como tal seja removida da vida social e substituída por uma sociedade verdadeiramente comunitária, igualitária e compartilhada, poderosas forças ideológicas, tecnológicas e sistêmicas serão usadas pela sociedade existente para degradar o meio ambiente e, na verdade, toda a biosfera.
Portanto, hoje, mais do que nunca, é imperativo que desenvolvamos a consciência e o movimento para remover a dominação da sociedade, na verdade, de nossa vida cotidiana — nas relações entre jovens e idosos, entre mulheres e homens, em instituições educacionais e locais de trabalho e em nossa atitude em relação ao mundo natural. Permitir que o veneno da dominação — e uma sensibilidade dominadora — persista é, neste momento, ignorar as raízes mais básicas de nossos problemas ecológicos e sociais e suas fontes, que podem ser rastreadas até o início de nossa civilização.
Em segundo lugar, sendo mais específico, a moderna sociedade de mercado que chamamos de capitalismo e seu alter-ego, o “socialismo de estado”, transformaram em uma crise todos os problemas históricos de dominação. As consequências dessa economia de mercado do tipo “crescer ou morrer” devem levar inexoravelmente à destruição da base natural das formas de vida complexas, inclusive a humanidade. No entanto, é muito comum hoje em dia atribuir ao crescimento populacional ou à tecnologia, ou a ambos, a culpa pelos desarranjos ecológicos que nos assolam. No entanto, não podemos destacar nenhum desses fatores como “causas” de problemas cujas raízes mais profundas estão, na verdade, na economia de mercado. As tentativas de se concentrar nessas supostas “causas” são escandalosamente enganosas e desviam nosso foco das questões sociais que precisamos resolver.
Na experiência americana, pessoas com apenas uma ou duas gerações de distância da minha abriram caminho pelas vastas florestas do Oeste, quase exterminaram milhões de bisões, araram pradarias férteis e devastaram uma grande parte de um continente — tudo isso usando apenas machados, arados simples, veículos puxados por cavalos e ferramentas manuais simples.
Não foi necessária nenhuma revolução tecnológica para criar a atual devastação do que antes era uma região vasta e fecunda capaz, com um gerenciamento racional, de sustentar a vida humana e não humana. O que trouxe tanta ruína à terra não foram os implementos tecnológicos usados por aquelas gerações anteriores de americanos, mas o impulso insano dos empreendedores para obter sucesso na amarga luta do mercado, para expandir e devorar as riquezas de seus concorrentes para não serem devorados por seus rivais. Durante minha vida, milhões de pequenos agricultores americanos foram expulsos de suas casas não apenas por desastres naturais, mas também por grandes corporações agrícolas que transformaram grande parte da paisagem em um vasto sistema industrial de cultivo de alimentos.
Além de uma sociedade baseada no crescimento sem fim e no desperdício que devastou regiões inteiras — na verdade, um continente — com apenas uma tecnologia simples, a crise ecológica que ela produziu é sistêmica e não uma questão de desinformação, insensibilidade espiritual ou falta de integridade moral. A doença social atual não está apenas na perspectiva que permeia a sociedade atual; ela está, acima de tudo, na própria estrutura e na lei da vida do próprio sistema, em seu imperativo, que nenhum empresário ou corporação pode ignorar sem enfrentar a destruição: crescimento, mais crescimento e ainda mais crescimento.
Culpar a tecnologia pela crise ecológica serve, mesmo que não intencionalmente, para nos cegar para as maneiras pelas quais a tecnologia poderia, de fato, desempenhar um papel criativo em uma sociedade racional e ecológica. Em tal sociedade, o uso inteligente de uma tecnologia sofisticada seria extremamente necessário para restaurar os vastos danos ecológicos que já foram infligidos à biosfera, muitos dos quais não serão reparados sem a intervenção humana criativa.
Juntamente com a tecnologia, a população é comumente apontada como a suposta “causa” da crise ecológica. Mas a população não é, de forma alguma, a ameaça avassaladora que alguns discípulos de Malthus nos movimentos ecológicos atuais querem nos fazer acreditar. As pessoas não se reproduzem como moscas-de-fruta, tão frequentemente citadas como exemplos de crescimento reprodutivo irracional. Elas são produtos da cultura, assim como da natureza biológica. Com padrões de vida decentes, famílias com educação razoável geralmente têm menos crianças, para melhorar a qualidade de suas vidas.
Além disso, com a educação e a consciência da opressão de gênero, as mulheres não se permitem mais ser reduzidas a meras fábricas de reprodução. Em vez disso, elas reivindicam sua condição de seres humanos com todos os direitos a vidas significativas e criativas. Ironicamente, a tecnologia tem desempenhado um papel importante na eliminação do trabalho doméstico que, durante séculos, estupefazia culturalmente as mulheres e as reduzia a meras servas dos homens e do desejo dos homens de ter crianças — de preferência filhos, com certeza.
De qualquer forma, mesmo que a população diminuísse por um motivo não especificado, as grandes corporações tentariam fazer com que as pessoas comprassem mais e ainda mais para possibilitar a expansão econômica. Se não conseguissem atingir um mercado consumidor doméstico grande o suficiente para expandir, as mentes corporativas se voltariam para os mercados internacionais — ou para o mais lucrativo de todos os mercados, o militar.
Por fim, pessoas bem-intencionadas que consideram o moralismo new age, as abordagens psicoterapêuticas ou as mudanças no estilo de vida pessoal como a chave para resolver a atual crise ecológica estão destinadas a se decepcionar tragicamente. Não importa o quanto esta sociedade se pinte de verde ou fale sobre a necessidade de uma perspectiva ecológica, a maneira como a sociedade literalmente respira não pode ser desfeita, a menos que passe por profundas mudanças estruturais: ou seja, substituindo a competição pela cooperação e a busca de lucro por relacionamentos baseados no compartilhamento e na preocupação mútua.
Dada a atual economia de mercado, uma corporação ou empresário que tentasse produzir bens de acordo com uma perspectiva ecológica minimamente decente seria rapidamente devorado por um rival em um mercado cujo processo seletivo de concorrência recompensa os mais vis às custas dos mais virtuosos. Afinal de contas, “negócios são negócios”, como diz a máxima. E os negócios não permitem espaço para pessoas restringidas pela consciência ou por dúvidas morais, como atestam os muitos escândalos na “comunidade empresarial”. Tentar conquistar a “comunidade empresarial” para uma sensibilidade ecológica, sem contar práticas ecologicamente benéficas, seria como pedir a tubarões predadores que vivam de grama, ou “persuadir” leões a se deitarem gentilmente ao lado de cordeiros.
O fato é que nos deparamos com um sistema social totalmente irracional, e não simplesmente com indivíduos predadores que podem ser conquistados por ideias ecológicas por meio de argumentos morais, psicoterapia ou até mesmo pelos desafios de um público avesso a seus produtos e comportamento. Não é tanto que esses empresários controlem o atual sistema de competição selvagem e crescimento sem fim, mas sim que o atual sistema de competição selvagem e crescimento os controla.
A estagnação da ideologia new age hoje nos Estados Unidos atesta seu trágico fracasso em “aprimorar” um sistema social que precisa ser completamente substituído, se quisermos resolver nossa crise ecológica. Só podemos elogiar indivíduos que, em virtude de seus hábitos de consumo, atividades de reciclagem e apelos por uma nova sensibilidade, realizam atividades públicas para deter a degradação ecológica. Cada um certamente faz sua parte. Mas será necessário um esforço muito maior — um movimento político organizado, claramente consciente e voltado para o futuro — para enfrentar os desafios básicos apresentados por nossa sociedade agressivamente antiecológica.
Sim, nós, como indivíduos, devemos mudar nosso estilo de vida o máximo possível, mas é a maior miopia acreditar que isso é tudo o que devemos fazer, ou até mesmo o principal. Precisamos reestruturar toda a sociedade, mesmo que nos envolvamos em mudanças de estilo de vida e em lutas por questões isoladas contra a poluição, usinas nucleares, o uso excessivo de combustíveis fósseis, a destruição do solo e assim por diante.
Precisamos ter uma análise coerente das relações hierárquicas profundamente arraigadas e dos sistemas de dominação, bem como das relações de classe e da exploração econômica que degradam as pessoas e o meio ambiente. Aqui, devemos ir além das percepções fornecidas por marxistas, sindicalistas e até mesmo por muitos economistas liberais que, durante anos, reduziram a maioria dos antagonismos e problemas sociais à análise de classe. A luta de classes e a exploração econômica ainda existem, e a análise marxista de classes revela desigualdades intoleráveis na ordem social atual.
Mas a crença marxista e liberal de que o capitalismo desempenhou um “papel revolucionário” na destruição das comunidades tradicionais e que os avanços tecnológicos que buscam “dominar” a natureza são uma pré-condição para a liberdade soa terrivelmente vazia hoje, quando muitos desses mesmos avanços estão sendo usados para fabricar as armas e os meios de vigilância mais formidáveis que o mundo já viu. Socialistas marxistas da década de 1930 tampouco poderiam ter previsto o sucesso com que o capitalismo usaria suas proezas tecnológicas para cooptar a classe trabalhadora e até mesmo diminuir seu número em relação ao restante da população.
Sim, as lutas de classe ainda existem, mas elas ocorrem cada vez mais abaixo do limiar da guerra de classes. Os trabalhadores, como posso atestar com base em minha própria experiência como fundidor e como operário da General Motors, não se consideram anexos sem mente de máquinas, ou moradores de fábricas, ou até mesmo “instrumentos da história”, como marxistas poderiam dizer. Eles se veem como “seres humanos vivos”: como pais e mães, como filhos e filhas, como pessoas com sonhos e visões, como membros de comunidades — não apenas de sindicatos. Vivendo em vilas e cidades, suas aspirações eminentemente humanas vão muito além de seu “papel histórico” como agentes de classe da “história”. Eles sofrem com a poluição de suas comunidades, bem como de suas fábricas, e estão tão preocupados com o bem-estar de seus filhos, companheiros, vizinhos e comunidades quanto com seus empregos e escalas salariais.
O enfoque excessivamente econômico do socialismo e do sindicalismo tradicionais fez com que, nos últimos anos, esses movimentos ficassem para trás em relação às questões e visões ecológicas emergentes, assim como ficaram para trás, devo acrescentar, em relação às preocupações feministas, às questões culturais e às questões urbanas, que muitas vezes ultrapassam as linhas de classe para incluir pessoas de classe média, intelectuais, pequenos proprietários e até mesmo alguns burgueses.
Sua incapacidade de confrontar a hierarquia — não apenas a classe e a dominação, não apenas a exploração econômica — muitas vezes afastou as mulheres do socialismo e do sindicalismo, na medida em que elas despertaram para a realidade milenar de que têm sido oprimidas independentemente de sua condição de classe. Da mesma forma, preocupações comunitárias amplas, como a poluição, afligem as pessoas como sendo pessoas, independentemente da classe a que pertençam. Desastres como o derretimento do reator de Chernobyl, na Ucrânia, deixaram em pânico todas as pessoas expostas à radiação da usina, e não apenas os trabalhadores e camponeses.
Na verdade, mesmo que conseguíssemos uma sociedade sem classes e livre de exploração econômica, será que conseguiríamos prontamente uma sociedade racional? Será que as mulheres, jovens, enfermos, idosos, pessoas de cor, vários grupos étnicos oprimidos — a lista é, de fato, enorme — estariam livres da dominação?
A resposta é um “não” categórico — um fato que as mulheres certamente podem atestar, mesmo dentro dos próprios movimentos socialistas e sindicalistas. Sem eliminar as antigas estruturas hierárquicas e dominadoras das quais as classes e o Estado de fato surgiram, teríamos feito apenas uma parte das mudanças necessárias para alcançar uma sociedade racional. Ainda haveria um tóxico histórico em uma sociedade socialista ou sindicalista — a hierarquia — que corroeria continuamente seus ideais mais elevados, ou seja, a conquista de uma sociedade verdadeiramente livre e ecológica.
Talvez a característica mais inquietante de muitos grupos radicais atuais, especialmente os socialistas que podem aceitar a observação anterior, seja seu compromisso com pelo menos um Estado mínimo, que coordenaria e administraria uma sociedade sem classes e igualitária — uma sociedade não hierárquica, nada menos! Ouvimos esse argumento de Andre Gorz e muitos outros que, presumivelmente devido às “complexidades” da sociedade moderna, não conseguem conceber a administração de assuntos econômicos sem algum tipo de mecanismo coercitivo, embora com uma “face humana”.
Essa visão logística e, em alguns casos, francamente autoritária da condição humana (conforme expressa nos escritos de Arne Naess, o pai da Ecologia Profunda) lembra um cachorro correndo atrás do rabo. Simplesmente porque a “cauda” — uma metáfora da “complexidade” econômica ou dos sistemas de distribuição do mercado — está lá não significa que o “cão” metafórico deva persegui-la em círculos que não levam a lugar algum. A “cauda” com a qual devemos nos preocupar pode ser racionalmente simplificada com a redução ou eliminação das burocracias comerciais, a dependência desnecessária de produtos estrangeiros que podem ser produzidos por meio de reciclagem em casa, e a subutilização de recursos locais que agora são ignorados por não terem preços “competitivos”: em suma, eliminando a vasta parafernália de bens e serviços que podem ser indispensáveis para a obtenção de lucros e a concorrência, mas não para a distribuição racional de bens em uma sociedade cooperativa.
A dolorosa realidade é que a maioria das desculpas na teoria radical para preservar um “estado mínimo” deriva das visões míopes de ecossocialistas que podem aceitar o atual sistema de produção e troca como ele é em um grau ou outro — não como ele deveria ser em uma economia moral. Assim concebidas, a produção e a distribuição parecem mais formidáveis — com seu maquinário burocrático, divisão irracional do trabalho e natureza “global” — do que realmente precisam ser. Não seria necessária nenhuma grande sabedoria ou variedade de computadores para mostrar, mesmo com um grão de imaginação, como o atual sistema “global” de produção e distribuição pode ser simplificado e ainda proporcionar um padrão de vida decente para todos.
De fato, foram necessários apenas cerca de cinco anos para reconstruir uma Alemanha arruinada após a Segunda Guerra Mundial, muito mais tempo do que seria necessário para que as pessoas pensantes de hoje removessem o aparato estatista e burocrático para administrar a distribuição global de bens e recursos.
O que é ainda mais inquietante é a crença ingênua de que um “estado mínimo” poderia de fato permanecer “mínimo”. Se a história já mostrou alguma coisa, é que o Estado, longe de ser apenas um instrumento de uma elite governante, torna-se um organismo por si só que cresce tão implacavelmente quanto um câncer.
O anarquismo, nesse aspecto, exibiu uma presciência que revela a fraqueza assustadora do compromisso socialista tradicional com um Estado — proletário, social-democrata ou “mínimo”. Criar um estado é institucionalizar o poder na forma de uma máquina que existe separada do povo. É profissionalizar o governo e a formulação de políticas, criar um interesse distinto (seja de burocratas, deputados, comissários, legisladores, militares, policiais, ad nauseam) que, por mais fraco ou bem-intencionado que seja no início, acaba assumindo um poder corruptivo próprio.
Quando, ao longo da história, os estados — por mais “mínimos” que sejam — alguma vez se dissolveram ou restringiram seu próprio crescimento em malignidades massivas? Quando foi que eles permaneceram “mínimos”?
A deterioração dos partidários verdes alemães — o chamado “partido não partidário” que, após conquistar um lugar no Bundestag, agora se tornou uma máquina política grosseira — é uma evidência dramática de que o poder corrompe violentamente. Idealistas que ajudaram a fundar a organização e procuraram usar o Bundestag meramente como uma “plataforma” para sua mensagem radical já a abandonaram com desgosto ou se tornaram exemplos bastante desagradáveis de carreirismo político arbitrário.
Seria preciso ser totalmente ingênuo ou simplesmente cego para as lições da história para ignorar o fato de que o Estado, “mínimo” ou não, absorve e, em última análise, digere até mesmo seus críticos mais bem-intencionados, quando eles entram nele. Não é que os estatistas usem o estado para aboli-lo ou “minimizar” seus efeitos; ao contrário, é o estado que corrompe até mesmo os antiestatistas mais idealistas que flertam com ele.
Por fim, a característica mais perturbadora do estatismo — mesmo o “estatismo mínimo” — é o fato de ele minar completamente uma política baseada no confederalismo. Uma das características mais infelizes da história socialista tradicional, marxista ou não, é que ela surgiu em uma era de construção de estados-nação. O modelo jacobino de um estado revolucionário centralizado foi aceito quase sem críticas pelos socialistas do século XIX e tornou-se parte integrante da tradição revolucionária — uma tradição, devo acrescentar, que erroneamente se associou à ênfase nacionalista da Revolução Francesa, como visto na “Marselhesa” e em sua adulação da pátria.
A visão de Marx de que a revolução francesa era basicamente um modelo para a formulação de uma estratégia revolucionária — ele erroneamente afirmou que sua forma jacobina era a mais “clássica” das revoluções “burguesas” — teve um efeito desastroso sobre a tradição revolucionária. Lenin adaptou essa visão de forma tão completa que os bolcheviques foram considerados, com razão, os “jacobinos” do movimento socialista russo e, é claro, Stalin usou técnicas como expurgos, julgamentos de fachada e força bruta com efeitos letais para o projeto socialista como um todo.
A noção de que a liberdade humana pode ser alcançada, muito menos perpetuada, por meio de um estado de qualquer tipo é monstruosamente contraditória — uma contradição de seus termos. As tentativas de justificar a existência de um fenômeno cancerígeno como o Estado e o uso de medidas estatistas ou de “estatismo” — muitas vezes erroneamente chamado de “política”, que na verdade significa a autogestão da polis [cidade] — excluem uma forma radicalmente diferente de gestão social, a saber, o confederalismo.
De fato, durante séculos, as formas democráticas de confederalismo — nas quais os municípios eram coordenados por deputados mandatários e revogáveis que estavam sempre sob escrutínio público — competiram com as formas estatistas e constituíram uma alternativa desafiadora à centralização, à burocratização e à profissionalização do poder nas mãos de órgãos de elite.
Gostaria de enfatizar que o confederalismo não deve ser confundido com o federalismo, que é simplesmente uma continuação dos estados-nação em uma rede de acordos que preservam as prerrogativas da formulação de políticas com pouco ou nenhum envolvimento dos cidadãos. O federalismo é simplesmente o estado em grande escala, na verdade, a centralização adicional de estados já centralizados, como na república federativa dos Estados Unidos, na Comunidade Europeia e na recém-formada Comunidade de Estados Independentes — todas coleções de enormes superestados continentais que removem ainda mais qualquer controle que as pessoas tenham sobre os estados-nação.
Uma alternativa confederalista se basearia em uma rede de assembleias populares de formulação de políticas com deputados revogáveis para conselhos confederais locais e regionais — conselhos cuja única função, devo enfatizar, seria julgar diferenças e realizar tarefas estritamente administrativas.
Dificilmente se poderia avançar em tal perspectiva fazendo uso de uma formação estatal de qualquer tipo, por menor que fosse. Na verdade, fazer malabarismos com perspectivas estatistas e confederais em um jogo verbal distinguindo “mínimo” de “máximo” é criar confusão sobre a base para uma nova política estruturada em torno da democracia participativa.
Entre os Verdes nos Estados Unidos, já houve tendências que absurdamente clamam por “descentralização” e “democracia de base”, ao mesmo tempo em que procuram apresentar candidatos para cargos estaduais e nacionais, ou seja, para instituições estatistas, uma de cujas funções essenciais é confinar, restringir e essencialmente suprimir instituições e iniciativas democráticas locais.
De fato, como enfatizei em outros livros e ensaios, quando libertários de todos os tipos, mas particularmente anarquistas e ecossocialistas, se envolvem em políticas municipalistas confederadas e se candidatam a cargos públicos municipais, eles não estão apenas buscando refazer cidades, vilas e aldeias com base em redes confederadas totalmente democráticas, eles estão concorrendo contra o estado e os escritórios parlamentares. Por isso, reivindicar um “estado mínimo”, mesmo como uma instituição de coordenação, como Andre Gorz e outros fizeram, é obscurecer e neutralizar qualquer esforço para substituir o estado-nação por uma confederação de municípios.
É mérito do anarquismo antigo — e, mais recentemente, do eco-anarquismo que está no cerne da ecologia social — o fato de rejeitar firmemente a orientação socialista tradicional em relação ao poder do Estado e reconhecer o papel corruptor da participação em eleições parlamentares. O que é lamentável é que essa rejeição — tão claramente corroborada pela corrupção de socialistas estatistas, verdes e membros de outros movimentos radicais declarados — não foi sutilmente diferenciada o bastante para distinguir a atividade em nível municipal (que até mesmo Mikhail Bakunin considerava válida) como a base da política no sentido helênico: ou seja, separar a atividade eleitoral em nível local da atividade eleitoral em nível provincial e nacional, que realmente constitui uma política de Estado.
A ecologia social, independentemente de seus outros valores ou falhas, representa uma interpretação coerente dos enormes problemas ecológicos e sociais que enfrentamos atualmente. Sua filosofia, teoria social e prática política formam uma alternativa vital para a estagnação ideológica e o trágico fracasso dos atuais projetos socialistas, sindicalistas e radicais que estavam tão em voga até mesmo na década de 1960.
Quanto às “alternativas” que nos oferecem soluções ecológicas místicas ou new age, o que poderia ser mais ingênuo do que acreditar que uma sociedade cujo próprio metabolismo se baseia no crescimento, na produção para si mesma, na hierarquia, nas classes, na dominação e na exploração poderia ser mudada simplesmente pela persuasão moral, pela ação individual, ou por um primitivismo que essencialmente vê a tecnologia como uma maldição e que se concentra, de várias formas, no crescimento demográfico e nos modos pessoais de consumo como questões primordiais?
Precisamos chegar ao cerne da crise que enfrentamos e desenvolver uma política popular que evite o estatismo em um extremo e o privatismo new age no outro. Se essa meta for descartada como utópica, sou obrigado a questionar o que muitos radicais hoje chamariam de “realismo”.
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Sobre isso, leia também Princípios para assembleias de consensoPrincípios para assembleias de consenso
Segue abaixo a reprodução de uma seção do livro Um Projeto de Democracia (The Democracy Project, 2013), de David Graeber. O livro é sobre a experiência do autor e ativista com a organização horizontal e descentralizada de movimentos como o…, de David Graeber. ↩ -
Um movimento radical mundial bastante influenciado por essa visão política é o Extinction Rebellion. ↩